terça-feira, 31 de julho de 2007

É hoje!

Já tenho ouvido de tudo um pouco, mas por esta, confesso, não esperava: hoje, dia 31 de Julho, é o dia nacional do... Orgasmo!!!

Não tenho grandes comentários a fazer, dado o ridículo da questão, a não ser que foi inevitável ter-me lembrado daquela velha anedota do homem de meia-idade que conta ao seu médico, sorridente, que só faz amor uma vez por ano. O médico estranha a anacrónica alegria por aquilo que deveria ser uma enorme frustração, e pergunta ao paciente o porquê de tal reacção. O homem responde, radiante: Ó doutor, é que... é hoje, é hoje!!
Quem sabe se quem se lembrou de um dia nacional para o orgasmo não é o tal homem da anedota, e... é hoje??
Divirta-se, amigo!

O eclipse de Antonioni


Por alguma estranha razão, este abrasador final de Julho está a levar-nos os realizadores de cinema da chamada "velha guarda", aqueles monstros sagrados que nos deram tantas e tão boas horas de prazer.
Primeiro foi Ingmar Bergman, agora Michelangelo Antonioni. Morreu tranquilamente em Roma, aos 94 anos - bonita idade, apesar de tudo, que lhe permitiu uma longa vida a fazer aquilo que tão bem sabia fazer e de que tanto gostava. Apesar de ser formado em economia pela Universidade de Bolonha, acabou por apaixonar-se pelo cinema quando se mudou para Roma e estudá-lo a fundo, na Cinecittà, dedicando toda a sua vida a essa paixão, depois disso.
De entre os seus filmes mais conhecidos não posso deixar de destacar Blow Up (1966 - o seu primeiro filme de língua inglesa), um clássico do cinema que nos revela uma surpreendente Jane Birkin ainda muito no início de carreira, contracenando com duas grandes actrizes: Vanessa Redgrave e Sarah Miles. Blow Up deu ao realizador um dos muitos prémios com que foi agraciado - a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1967.
Ao contrário de Bergman, Antonioni viu o conjunto da sua carreira premiado com um Óscar da Academia, em 1995.
Eclipsou-se assim, sem ruído nem surpresa, depois de muitos anos de uma doença que o impediu, nas últimas décadas, de realizar e de realizar-se.


Principais filmes:

Escândalo de Amor (1950)
O Grito (1957)
A Aventura (1960)
A Noite (1961)
O Eclipse (1962)
O Deserto Vermelho (1964)
Blow-up (1966)
Identificação de uma Mulher (1982)

A lucidez perigosa


De novo Clarice Lispector, que estou a ler e com quem ando muito sintonizada. Este texto é belíssimo e de uma enorme profundidade. Não é bem um poema (antes uma prosa poética), embora a sua estética o remeta definitivamente para a Poesia.
Há fases assim, de uma visão extra-lúcida das coisas. De pura clarividência. Suponho que todos passamos por elas alguma vez, são aquelas que antecedem uma criação ou um acontecimento muito especial. Um encontro com o que somos por dentro, um olhar mais atento no espelho de todos os dias.
Mas atenção: para quem não sabe, não pode ou não quer enfrentar-se, fica o aviso - a lucidez pode matar.
A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise.
Estou, por assim dizer, vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que: Que faço dessa lucidez?

Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes.

Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.
Eu consisto,
Eu consisto,
Amén.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

La terre est bleue comme une orange


La terre est bleue

La terre est bleue comme une orange
Jamais une erreur les mots ne mentent pas
Ils ne vous donnent plus à chanter
Au tour des baisers de s'entendre
Les fous et les amours
Elle sa bouche d'alliance
Tous les secrets tous les sourires
Et quels vêtements d'indulgence
À la croire toute nue.
Les guêpes fleurissent vert
L'aube se passe autour du cou
Un collier de fenêtres
Des ailes couvrent les feuilles
Tu as toutes les joies solaires
Tout le soleil sur la terre
Sur les chemins de ta beauté.
Oeil de sourd
Faites mon portait.
Il se modifiera pour remplir tous les vides.
Faites mon portrait sans bruit, seul le silence,
A moins que - s'il - sauf - excepté -
Je ne vous entends pas.
Il s'agit, il ne s'agit plus.
Je voudrais ressembler
- Fâcheuse coïncidence, entre autres grandes affaires.
Sans fatigue, têtes nouées
Aux mains de mon activité.

Paul Eluard, L'amour la poésie (1929)

Sonho de uma Noite de Verão


Aos 89 anos morreu, esta madrugada, Ingmar Bergman, o realizador que mais e melhor notabilizou o cinema nórdico.
Deixa-nos uma herança composta de muitos e belíssimos filmes, numa visão pessoalíssima dos dramas humanos, em todos os seus cambiantes. Mas não só. Bergman revelou sempre um carinho e interesse muito especiais pelo universo feminino, pela sua complexidade e infinitas nuances. Por contraste com as personagens masculinas dos seus filmes, muito mais tipificadas, as mulheres de Bergman são sempre ricas de contrastes, movem-se e evoluem na trama com surpresa e desenvoltura. A sua maior musa foi Liv Ullmann, a quem ofereceu, ainda há pouco tempo, talvez o papel mais importante da sua vida de actriz: o de Marianne, em Saraband (uma espécie de continuação, muitos anos depois, do filme Cenas da Vida Conjugal, embora com diferenças essenciais que impedem a sua classificação como "sequela" deste).
Mas Bergman não se esgotou no cinema: foi também escritor, director artístico e encenador de teatro, tendo levado à cena inúmeras e importantes peças de teatro e óperas.
A sua vasta obra somou prémios internacionais de prestígio e foi aclamada por todo o mundo, embora a Academia de Hollywood lhe tenha negado sempre o Óscar (para o qual foi nomeado, por várias vezes).

Partiu numa noite de Verão, talvez sonhando ainda. Ficam os seus filmes, vencendo por ele o Tempo, para lembrá-lo e nos deliciar.
Legendas:
1. Em cima - Bergman, durante a rodagem de Morangos Silvestres (1957).
2. Em baixo - Os estúdios Rasunda, nos arredores de Estocolmo, berço de grande parte da sua filmografia.

domingo, 29 de julho de 2007

Prémios Porta do Vento


Mais um domingo, mais um dia de dolce fare niente.
Talvez por isso, hoje deu-me para inventar isto: já que estão tão em voga os prémios bloguísticos, vou armar em juíza e instaurar os
PRÉMIOS PORTA DO VENTO
Nada de "blog com tomates" ou com outras hortaliças ainda menos edificantes, "blog pensante" e outros clássicos da blogosfera. Os prémios Porta do Vento serão oferecidos aos blogs de que mais gosto, em vários aspectos, ou, pelo contrário, àqueles de que gosto menos ou me chocam por alguma razão. Não há categorias fixas nem regulamento: o Porta do Vento é um espaço livre, felizmente em permanente mutação, ao sabor de impulsos e de momentos mais inspirados.
Logo se verá o que sai daqui, nem eu sei. E que ninguém se melindre por receber um prémio menos simpático, ou por não receber aquele que mais gostaria de ter: esta brincadeira vale o que vale, ou seja, RIGOROSAMENTE NADA!
Deixo à votação os símbolos que se seguem, para quem quiser opinar:

Se não chegar a nenhuma conclusão válida ou houver empates, a minha decisão é soberana. Que haja ao menos um sítio onde eu ainda mande alguma coisa...
Pronto, votem. E não façam como nas últimas autárquicas de Lisboa, se não mando vir uma camionete de Alguidares de Baixo cheia de reformados delirantes, prontos a dar vivas a esta ideia depois de uma almoçarada de coiratos.

Nota acrescentada à noite - Os símbolos também podem ser estes, em conjunto e representando várias categorias:







sábado, 28 de julho de 2007

Confesso

68%How Addicted to Blogging Are You?

Pronto, confesso.

Tenho andado a fugir à ideia de avaliar a minha adicção, mas acabei por enfrentar a fera. E convenhamos, há coisas piores...

Privilégio








Às vezes, o hábito faz-me esquecer o privilégio raro que é viver num sítio como este.
Hoje a baía de Cascais está especialmente bonita, com um céu de um azul intenso e imenso.
Como harina, como pan, algo bueno que no pides e se dá...
Pedro Guerra, ajudas-me a celebrá-la como ela merece?
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Perigo iminente


São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher...
(Vinicius de Moraes)
Nota: A lua cheia de hoje está mesmo um perigo. Iminente e eminente.

Palavras, para quê?

AMÁLIA, A TUA VOZ

Vem das sombras do Tempo
Da memória da Terra
Essa força que encerra
Amália, a tua voz

Amália, a tua voz
Não tem nome ou idade
É toda liberdade
É mar, sopro de vento

Tem a cor das palavras
Murmuradas nos sonhos
É de mel e medronhos
Amália, a tua voz

Amália, a tua voz
Sabe a água das fontes
Cheira a urze dos montes
E a roseiras bravas

É rastilho veloz
Que ateia um fogo posto
É poente de Agosto
Amália, a tua voz

Amália, a tua voz
Chora todos os prantos
Rasga todos os mantos
Que nos escondem de nós

É colcha de Viana
Ricamente bordada
É renda delicada
Amália, a tua voz

Amália, a tua voz
É madeira entalhada
Cordão de oiro, arrecada
Da melhor filigrana

Caravela ou fragata
Onde embarcam desejos
É promessa de beijos
Amália, a tua voz

Amália, a tua voz
É sangue, é vinho novo
É a alma de um povo
Que a cantar se desata


Nota: Apesar do título que escolhi para este post, atrevi-me a juntar a esta pérola que tentei descaradamente roubar daqui (e que acabou por ser-me oferecida, com a maior simpatia) umas palavras minhas de homenagem a Amália, que escrevi quando ela morreu. Quando ela morreu, digo eu? Não, que ela está ainda bem viva e anda por aqui a tentar perceber esta coisa dos blogs (fazendo, tenho a certeza, os mais espirituosos comentários sobre esta alienação colectiva...). Aqui ficam essas palavras, então, a assinalar mais um ano sobre o seu nascimento. Que é mais ou menos por agora, ninguém sabe ao certo quando nem ela própria sabia, o que só acrescenta mistério e graça à sua imagem. Parece que foi, seguramente, no tempo das cerejas.
Recostem-se, aumentem o som e ouçam, com toda a calma e sem interrupções. Até o Gershwin deve estar a babar-se...




(in Porgy and Bess, de George Gershwin)

Roleta russa


Para quem, como eu, não conhecia praticamente nada sobre este problema, a enviada especial deste blog no Brasil conta o que se passa por lá.
E ainda nós nos queixamos...


sexta-feira, 27 de julho de 2007

Zoom

Definitivamente, a política não aguenta ser vista à lupa. O zoom é quase sempre um espectáculo sórdido.

Clarice, a grande


Escolhi estes pequenos trechos de um dos Contos de Clarice Lispector - Os Desastres de Sofia* - que descreve, com suprema mestria, a fantasia aterradora e hipnótica do primeiro amor e da primeira vertigem sensual. Neste caso, tudo inspirado por um professor (fascinado com uma redacção criativa da aluna precoce), e ensombrado por sentimentos de confusão, culpa e vergonha. Deliciem-se com este tratado de psicologia da adolescência:
«Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. (...)
Calmo como antes de friamente matar, ele disse:
- Chegue mais perto...
Como é que um homem se vingava? Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida.(...)
Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. Disfarcei olhando o tecto, o chão, as paredes, e mantinha a mão estendida porque não sabia como recolhê-la. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca o soubera. Naquele tempo eu pensava que tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência atormentada do pecado me redimia do vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo: eu não queria esse agradecimento que não só era a minha maior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía.(...)
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência... Com a mão apertando a boca, eu corri pela poeira do parque.»

Nota: Se não tiver o livro (Contos, Clarice Lispector, editora Relógio d'Água) pode ler este* conto na íntegra, aqui.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Dia de...


Parece que hoje é o "Dia dos Avós" (deviam ser todos, mas enfim...). A moda pegou mesmo, hoje em dia tudo tem que ter um dia especial (quando será o dia do pardal-de-telhado-com-uma-asa-partida?).
Rendo-me. E, como acho que este é daqueles que é mesmo merecido, aqui fica a minha homenagem aos avós:
A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez.
(Miguel Torga)
Nota: Repito esta fotografia porque a acho maravilhosa, e não atribuo créditos por não saber quem é o fotógrafo nem o modelo.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Paraíso


Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
(David Mourão-Ferreira)


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(Pedro Guerra - Deseo)

Limites




O que me consterna, às vezes, é observar que o génio tem limites e a estupidez não.


(Alexandre Dumas)

Bom ar


Que bem se come no Porto!

Jantei ontem, com amigos inestimáveis, no muito in restaurante "D'Oliva", em Matosinhos. Aderindo a uma onda cada vez mais na moda, retoma a tradição da boa cozinha mediterrânica, a abrir logo com um pratinho de azeite aromatizado para molhar o pão e fazer boca para o que se segue. Belo jantar e melhor vinho, que eu não conhecia: Quinta dos Bons Ares.

Tudo, afinal, com muito bom ar.


segunda-feira, 23 de julho de 2007

Índia




Nunca estive na Índia. Por mais do que uma vez planeei aquela que é "a viagem da minha vida" e no entanto, por qualquer estranha razão, sempre teve que ser adiada. Mas não tenho pressa. Sei que, quando finalmente for, saberei que estou em casa. Não me peçam para explicar: uma certeza antiga, uma comoção subterrânea e imensa, desde sempre me segredam essa pertença. Um dia, tenho a certeza, vou dar-lhes ouvidos e deixar-me encantar.

domingo, 22 de julho de 2007

Passa. Entra.

Por mais voltas que dê, por mais música que ouça, acabo sempre por voltar a Pedro Guerra porque nunca me canso de ouvi-lo.

Hoje estou num desses dias em que só ele me enche as medidas.
Passa. Entra. Alguma forma encontrarás para passar por esta porta.
Lindo.
Ouçam até à exaustão, ou até saber de cor. Vão dar-me razão, tenho a certeza.

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Imagem - "Rooms by the sea", de Edward Hopper

sábado, 21 de julho de 2007

A Salgada Família

Que novas surpresas nos reservará ainda este can-can tripeiro? O país está em pulgas para saber qual o próximo elemento desta Salgada Família a sair da gruta: O burro? A vaca? A própria manjedoura?



Primeiro foi a loira Carolina, a "Eu". Depois de um estrondoso abandono, seguido de um make-over apressado, passou de Ágata a Virna Lisi, e, de novo virgem, publicou confissões entre escaldantes e sopeirais, na primeira pessoa, virou do avesso o todo-poderoso ex-amante, desafiou os feudos e os tabus da futebolândia, armou um pé de vento no país inteiro e ressuscitou, até, processos judiciais moribundos. Todos tememos nesses dias pela vida dela, coitadinha. Tão corajosa, tão desamparada, tão ultrajada e tão sinceramente arrependida dos pecados idos, a menina.
Depois, tudo acalmou. A ebulição passou a fervura lenta, controlada, com os livros a venderem-se como pãezinhos quentes e uma novela em preparação, para memória futura e futuro pé-de-meia da loira e pura Carolina.
Mas afinal havia outra, como diria a Mónica Sintra. O país esfregou os olhos, incrédulo e baralhado com a versão morena da heroína tripeira. Entrou em cena Ana Maria, a "Outra", e não quis ser menos do que a mana gémea: desmentiu e denunciou a irmã famosa e egoísta que lhe abortou negócios promissores, embrulhou a editora Dom Quixote e o presidente do Benfica em tramóias escusas e patrocínios duvidosos, defendeu o todo-poderoso ex-amante da mana, falou de milhões e revelou ainda mais segredos escabrosos.
Complicou-se o enredo da novela, que já tinha guião avançado, e tudo voltou à estaca zero. Para muitos de nós, atentos mas confusos espectadores, a morena parecia mesmo um novo coelho (ou melhor, uma nova bunny) saído da cartola do todo-poderoso ex-amante da loira. Seria? Talvez, que o tripeiro não costuma dar-se por vencido com tanta facilidade, e muito menos por uma alternadeira que passou do cabaret ao convento enquanto o diabo esfrega um olho.
Mas o guião da novela ainda não era definitivo: Com uma invulgar aptidão para a ribalta, eis que a família lança mais um actor no palco - o progenitor das meninas. Contrito, confessa ao jornalista que está muito incomodado com tudo o que está a acontecer. É natural, pensamos todos, nenhum pai gosta de ver as filhas assim expostas ao ridículo e à devassa das suas vidas privadas, por muito pouco recomendáveis que elas sejam. Isto custa-me muito, diz Joaquim Salgado, o "Pai". Baixamos os olhos, numa envergonhada mea culpa pelo nosso pecaminoso voyeurismo. Mas, de repente, o homem esquece-se da pose ensaiada: com um sorriso sardónico que revela um íntimo prazer, põe-se a dizer mal da filha morena. Que já teve direito a internamento psiquiátrico, que enganou a irmã loira-coitadinha, que passou a referir-se, de repente, ao todo-poderoso ex-amante da irmã loira-coitadinha como "o sr. Jorge", quando lhe chamava sempre, até há bem pouco tempo, "o boi" ou "o velho", e que isso traz óbvia água no bico. Hein, não acha estranho?, e pisca o olho ao jornalista, num trejeito revelador. Logo a seguir confunde tudo, e acaba por desvendar o verdadeiro motivo de tanta aversão à filha morena, subitamente amiga do todo-poderoso ex-amante da loira-coitadinha: Se eu falasse... os primeiros 13 minutos daquele jogo Boavista-Porto, uma vergonha... eu é que não queria ser árbitro daquilo... sim, o Boavista é o meu clube... não puxe por mim, não posso dizer mais nada.
Acaba embargado pela comoção da injustiça contra o seu clube de futebol, já completamente esquecido das filhas. E nós todos, acabamos boquiabertos com tanta sensibilidade. Angustiados, perguntamo-nos: E agora, quem virá a seguir?
Aguardam-se, pois, novos capítulos desta novela, cujo guião permanecerá em aberto enquanto houver membros da família que não tenham tido ainda os seus quinze minutos de glória.

Ilusões II


Com o visitante da Arábia Saudita não pegou, mas eu não desisto:
Amigo de Singapura que hoje entrou aqui na Porta do Vento, por acaso este pontão não pertence à sua casa, não?? É que eu teria muito gosto em retribuir-lhe a visita...
Perguntar não ofende, sempre ouvi dizer.

Em casa de ferreiro


Em recente post no blog Da Literatura, intitulado PORTAS QUE ABRIL FECHOU, Eduardo Pitta dá-nos conta da compra da editora Caminho pelo grupo económico liderado por Pais do Amaral, com o consequente despedimento de 35 funcionários e o exílio (para o Cacém) dos sobreviventes.
Tudo isto porque a imponente moradia da Av. Gago Coutinho onde funcionava a Caminho, propriedade do PCP, albergará a curto prazo a novel fundação do nobel Saramago.

Não só lamento e estranho o absoluto silêncio dos sindicatos quanto a esta situação - em casa de ferreiro, espeto de pau - como muito me intriga a escolha de Saramago: não teria sido mais lógico eleger Madrid, capital da Ibéria, para sediar a sua fundação? Na geografia segundo Saramago, Lisboa será, quando muito, uma cidade de recreio. Nada que se compare, portanto, à importância de tão ilustre ibero.

Sinal aberto


Pegando no mote dado por Pedro Arroja sobre piadas forenses, lembrei-me desta, igualmente verídica e passada num notário de província:
Uma mulher, gorda e afogueada, propunha-se tratar dos documentos necessários para o casamento civil da sua filha. A dada altura, o notário informou-a de que teria que ser a filha a assiná-los e tentou ajudar, perante a evidente contrariedade da mulher:
- Mas a sua filha já tem, ao menos, sinal aberto?
Resposta da mulher, corando violentamente e olhando em volta com uma expressão de terror:
- Ó senhor doutor, por amor de Deus fale mais baixo, não me desgrace a rapariga! Ela já tem o sinal aberto, é verdade, mas, se o noivo sabe disso, lá se vai o casamento!



quinta-feira, 19 de julho de 2007

Uma raridade

O famosíssimo e-bay anuncia e vende - pasme-se! - uma Bíblia Sagrada autêntica (!!!) e assinada pelo próprio (e não menos famoso) Jesus Cristo*.

Veja aqui e despache-se, se quer ser um dos raros eleitos a comprá-la, porque o stock deve ser limitado (Jesus Cristo tinha pouco tempo para autógrafos, andava ocupado de mais a fazer milagres para perder tempo com essas trivialidades...).

Não perca esta oportunidade única. E, já agora, pelo sim pelo não, quando fizer a encomenda deixe o seu nome próprio ou diminutivo, quem sabe se não terá a sorte de receber mesmo uma dedicatória personalizada no seu exemplar? Cristo é amigalhaço dos tansos (até disse: "bem aventurados os pobres de espírito, deles será o reino dos céus"), talvez engrace consigo e lhe faça essa surpresa...




Nota: Repare-se num pormenor curioso - Atento como sempre e prevendo o boom que teria a língua inglesa no mundo ocidental dois milénios depois, Jesus Cristo facilitou a vida aos seus leitores e escreveu a Bíblia sagrada já nesse idioma, como prova o título da capa aqui ao lado - Holy Bible.
* Notícia "gentilmente cedida" pelo Blog da Sabedoria.



terça-feira, 17 de julho de 2007

Descubra as diferenças

Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Pérolas na Blogosfera III


Não me pronunciei, propositadamente, sobre o frenesi que gerou a eleição das novas 7 maravilhas do mundo. Não elegi as minhas, nem me insurgi muito com as escolhas dos outros. O mundo tem muitas mais do que 7 maravilhas, e deixar de fora construções humanas tão importantes como as estátuas da ilha de Páscoa, a Acrópole de Atenas, o Alhambra ou Angcor, para referir só quatro delas, parece-me estúpido e redutor.
Mas enfim, a votação vale o que vale e, em democracia, a maioria leva a bicicleta. Em vez de uma proposta estéril para as 7 maravilhas do mundo moderno, prefiro deixar aqui, para reflexão, este post que encontrei no Jansenista, sobre as 7 maravilhas da blogosfera. Isto, sim, tem interesse. É um resumo, muito bem visto, dos vários atractivos e vantagens deste mundo de amizades e cumplicidades virtuais. Vale a pena ler.

domingo, 15 de julho de 2007

Até que a morte nos separe?


Segundo uma entrevista dada ao Diário de Notícias, o escritor José Saramago vaticina e defende, a médio prazo, um casamento (em comunhão de bens) entre Portugal e Espanha. A fusão dará um novo país que terá, segundo ele, o nome de Ibéria.
Não tenho muito a dizer sobre isso. Todos sabemos qual a metade da "Ibéria" que ele escolheu para viver, há longos anos. Todos sabemos, também, qual a metade que imporia as suas regras à outra, nesse novo e fascinante país. Qual a que sairia vitoriosa e qual a que seria cilindrada. Todos sabemos, ainda, como somos iguaizinhos (!!), nós e nuestros hermanos.
Não me interpretem mal: eu adoro Espanha, tenho-o dito sempre. É um país fantástico e admiro nos espanhóis muitas qualidades que seriam muito úteis aos portugueses, como a auto-estima indestrutível e a irredutibilidade na recusa de diluição dos símbolos nacionais, numa Europa que nunca será culturalmente homogénea. Mas uma coisa é o reconhecimento das nossas menoridades e outra, bem diferente, é achar que somos apenas feitos delas.
Claro que se D. Afonso Henriques não tivesse enfrentado a mãe, o problema nem sequer se poria e nós seríamos, provável e orgulhosamente, a estância balnear da tal Ibéria (e da Europa toda, a avaliar pela habilidade que os espanhóis têm de promover os seus produtos turísticos, com ETA e tudo). E seria óptimo para todos, disso não tenho dúvidas. Mas assim, depois de séculos e séculos numa guerra de David e Golias, e no actual estado de coisas, esta fusão soar-me-ia a pura rendição.
Nós e os espanhóis, até que a morte nos separe? Nah, não me parece.
Mas Saramago quer ser espanhol? Deixá-lo ser. Não me incomoda nada. Para mim, já o disse também, o Nobel português será sempre de Sophia.

Aviso aos platónicos

L'amour platonique est toujours plat... et jamais tonique.

Brincadeira de domingo

Sem palavras.

sábado, 14 de julho de 2007

Passeio matinal


A amizade é o amor sem asas.
Lord Byron


Pedes-me uma crítica aos teus quadros e isso deixa-me simultaneamente lisonjeada e nervosa, porque o sinto como uma responsabilidade. Vá lá, deixa-me ser presunçosa e acreditar que tenho alguma influência em ti… em ti e na tua obra, o que é ainda maior presunção. É quase como se me sentisse uma musa (coisa que nunca fui para ninguém), sabes, e gosto de pensar que poderia ser a tua… Já o sou, dizes tu? Deixas-me sem palavras, meu amigo. E não faças beicinho. Não, não estou a estragar tudo por te chamar meu amigo. O erotismo não é para aqui chamado, pois não? Sabes que gostei de ti desde o primeiro momento em que nos conhecemos. És, de todos os amigos do meu marido, aquele que tem mais a ver comigo, de longe. Os outros não me dizem muito, confesso, e parece-me que a simpatia é recíproca. Ainda estão todos entrincheirados do lado da ex… não é isso? Mas eu não tive culpa nenhuma, conheci o Daniel já depois do divórcio dele! Não o roubei a ninguém, porque é que eles me hostilizam? Ah, que ideia, deixa-te de galanteios. Não têm inveja nenhuma do Daniel. Têm os seus casamentos, maus ou bons, não quero meter-me nisso. Mas nenhum deles é como tu, abriste-me os braços desde que eu apareci. Não, não estou a tentar seduzir-te… muito menos agora, que acabei de casar com o teu melhor amigo!! Ris-te? Ah, bom, fico mais aliviada, esse teu sentido de humor é o que te salva sempre. Ou melhor, é o que nos salva, a ti e a mim. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, o Daniel tem muito pouco sentido de humor. E a Luísa também, não é? Como é que fomos arranjar duas pessoas tão diferentes de nós? Sim, claro, deve ter sido por isso mesmo, tens razão. Os extremos atraem-se, sempre foi assim…

Mas ainda bem que combinámos esta escapadela a quatro. Ainda por cima ao Porto, que é uma cidade de que eu gosto imenso. Não me digas que não conheces o Porto?! Ah, tens que dar uma volta comigo, talvez amanhã de manhã. Há certos sítios que são obrigatórios: Nevogilde, por exemplo, um bairro delicioso que parece um bocadinho do Minho incrustado em plena cidade. E os jardins de Serralves (mas isso deves conhecer, não?), a Baixa e a Ribeira. A Ribeira é uma beleza, e agora que foi toda recuperada está um brinquinho. Antes estava em ruínas, era um bocado deprimente e nem se percebia como é tão bonita! Mas conheces a Foz, claro. Faz-me sempre lembrar Cannes ou Nice, com as palmeiras e o passeio empedrado com varandim ao longo do mar, à moda da Côte. Podemos ir lá jantar hoje, que tal? Um primo do Daniel tem um restaurante na praia do Homem do Leme, onde se comem uns petiscos de comer e chorar por mais! Deves conhecê-lo, não? É um baixinho, casado com a Madalena, irmã da Teresa e do Luís Gonçalo. Mas, espera aí, ela é que é prima do Daniel. Ah, dela lembras-te? Pois, solteiríssima, nos tempos áureos em que ainda vivia naquele palacete da Lapa, que agora é um hotel. Belos tempos, dizes bem! Pois vamos hoje jantar com eles, está decidido.

É, o Porto é uma cidade especial - grave e séria - como canta o Rui Veloso. Gosto muito de vir cá, embora não gostasse de cá viver. Quem se habitua à mágica luz de Lisboa nunca mais consegue trocá-la por outra, sobretudo pela do Porto, que é bem mais sombria. Tu, então, que és pintor… mas vir até cá, de vez em quando, é um prazer. Calhou mesmo bem a inauguração desta tua exposição tão longe de casa, com uma razão destas o Daniel não teve coragem de dizer que não. E um fim-de-semana destes de vez em quando é essencial para o meu equilíbrio, dou-me mal com as rotinas. Outro cenário, outros cheiros, outras cores… percebes o que quero dizer? Percebes, claro. O pior é arrancar o Daniel de casa, ele é a antítese disto. Mas enfim, até não me posso queixar. A avaliar pelo que todos me dizem dele, parece que tenho conseguido verdadeiros milagres… e o mais engraçado é que ele acaba sempre por gostar, depois de conseguir vencer a inércia inicial. Às vezes não o entendo mesmo. Olha, são as vantagens de um casamento relâmpago, sem fase de incubação: ainda estamos a descobrir-nos! Já passaste essa fase há muito tempo? Pois, calculo que sim. Estás casado há quantos anos? Vinte e três?! Olha, eu, então, nem somados… deixa-me ver: foram nove com o Pedro Jorge (conheceste-o, não é verdade? Nessa época era diplomata de carreira, depois foi ministro), mais quatro – quase cinco – com o Carlos, e desta vez ainda não fiz um ano! Como vês… ah, mas agora é para sempre! Não te rias assim, olha que me vou ofender contigo. Eu bem sei que pensei o mesmo das outras vezes, mas agora estou mais madura. E mais cansada, também, para recomeçar tudo outra vez. Não, desta vez é para a vida. És engraçado, tu. Cultivas esse ar excêntrico mas afinal tens um casamento duradouro e sólido há uma data de anos. Qual é o segredo? Juro-te, gostava muito de saber. Pois, eu sei que não há receitas. Mas é bom saber que alguém, de vez em quando, encontra a sua própria fórmula. Porque tu encontraste, disso não tenho dúvidas. O teu casamento não é uma dessas prisões por obrigação ou preguiça de mudança. Não. Eu bem vejo que a Luísa te faz feliz. Vives satisfeito como um gato, confessa! A vossa relação é bonita de se ver. És talvez o caso mais flagrante de contraste que eu conheço: um artista – e dos bons! – com todas as inquietações e angústias que fazem nascer qualquer tipo de arte, e ao mesmo tempo um marido equilibrado e fiel, num casamento que se pode considerar burguês! Não me decepciones com essas graçolas, eu quero acreditar que és fiel à tua mulher… e também sei que não és rico, mas vives bem, caramba! A Luísa herdou uma bela quantia e soube aplicá-la bem, não precisa de trabalhar, e quanto a ti… os teus quadros vendem-se como pãezinhos quentes. Há muitos casais burgueses que vivem com metade dos vossos rendimentos…

Que sorte tivemos com o tempo! No meio deste Inverno chuvoso e triste, um fim-de-semana de sol magnífico! Quem havia de dizer? Até trouxe um livro, pensando que iríamos ficar enfiados no hotel. “Filhos da Sombra”, já leste? Do Joaquim Torres, disseram-me que é muito bom. Mas ainda nem o abri, o que me apetecia mesmo era deitar-me na relva a apanhar sol. Os nossos preguiçosos nem sabem o que estão a perder por ter ficado na cama esta manhã! Coitado, o Daniel anda cansadíssimo, foi bom ter aproveitado para dormir. Aquele hospital dá cabo dele. Chega a casa morto de cansaço, mal abre a boca. E a Luísa dorme sempre de manhã, não é? Faz bem, deve ser por isso que tem aquela pele óptima… que inveja! É tão bonita, a tua mulher. Não admira que continues a amá-la, tu que és mais sensível à estética do que a maioria das pessoas. Deixa-te de histórias, eu sei que a amas. E também sei que não é só pela beleza dela… há qualquer coisa naquela mulher que te pacifica, que te mantém ligado à terra. Se não fosse ela… acho que voavas, que te sumias no ar como as tuas meninas.

Está bem, pronto, falemos então delas. Se queres mesmo saber, a tua pintura causou-me uma impressão forte, gostei francamente. Reconheço que não é para qualquer ambiente. As decorações clássicas, mais pesadas, sufocariam as tuas meninas etéreas, tão delicadas, a gritar por espaços claros, panos esvoaçantes e janelas abertas a deixar entrar a luz…

Deviam fazer-se ambientes para quadros, e não o contrário. A propósito, é pena que elas estejam enclausuradas na cave da galeria. Precisam de sol, são como eu. Mas, voltando ao que me sugeriu a tua pintura, é engraçado (mas afinal acontece com todas as formas de expressão) como ela tem várias leituras possíveis, a vários níveis, e se calhar nenhuma dessas leituras é a que te inspirou. A expressão plástica tem destas coisas, depende dos olhos que a vêm, não é? O que estou a fazer é a dar-te a minha interpretação, o que me veio à cabeça quando vi os teus quadros. Mas não a leias como a de um crítico de arte, é puramente emocional e sem quaisquer fundamentos técnicos, obviamente.

Primeiro que tudo ressaltou a tua extrema sensibilidade, eu diria que quase feminina. Achei tocante a delicadeza, a leveza, a pureza que os teus quadros respiram. E não tem nada a ver com infantilidade, pelo contrário. A paz é um longo caminho de maturidade. És um homem maduro, quer queiras quer não! Em todos os sentidos… desculpa, estava a brincar outra vez e tu pediste-me uma reflexão séria. Pronto. Apaga a última frase. Agora a sério, faço-te o maior elogio que poderia fazer-te: as tuas meninas lembram-me as do Botticelli. Juro, e olha que eu sou louca pelo Botticelli. É o meu pintor favorito. Mas é verdade: são leves e puras como as dele. Não te babes. Eu sei que ele é um mestre, e depois? Não posso achar que tu também és? Claro, eu sei que há também séculos de distância entre elas, mas, de alguma maneira que não te sei explicar, vejo as tuas como reencarnações das outras. Não, não como cópias. É como se todas elas tivessem nascido de conchas, como a Vénus. Ao mesmo tempo são completamente diferentes. Como segunda leitura, vejo esse teu lado esotérico, toda essa simbologia que há nos arcos e portais de onde elas saem, das luas para que olham, das estradas que percorrem sem pôr os pés no chão. Para os não iniciados, são meros elementos decorativos e cumprem muito bem essa função. Mas para quem tem umas luzes… ah, elas são sereias, cantam para nos encantar e as seguirmos! Até onde?, pergunto-me. É inquietante pensar nisso… O Daniel achou-as muito bonitas, só isso. E inveja-te por causa dos modelos que lhes deram origem… não estou a cometer nenhuma inconfidência, foi ele mesmo que to disse! Ele também trabalha com corpos, é verdade, mas raramente são perfeitos e, pior do que isso, estão doentes. É muito diferente, não compares. Mas aquilo de que ele não se apercebeu é que as meninas dos teus quadros vivem noutra dimensão. Não faz segundas leituras. É um pragmático, o Daniel. Deformação profissional, conta só com o que é palpável… e a Luísa, o que acha delas? Nunca te perguntou porque pintas meninas diáfanas há tanto tempo, porque é esse o teu único tema? Não te faz perguntas, nunca? Vês, é o que eu te digo, ela é que é uma mulher inteligente… eu, com as minhas inseguranças, já te teria infernizado a vida por causa disso… haveria de comparar-me com elas constantemente e chegar sempre à conclusão de que eram mais novas, ou mais bonitas… sou idiota, eu sei, não precisas de mo dizer na cara! Não, não sou bonita nem nova, estás a ser caridoso. Ah, agora fazes-me corar, o Daniel nunca me disse uma frase tão bonita! És um poeta… podias ensinar ao teu amigo algumas dessas tiradas de charme! Mas, agora a sério: a Luísa nunca teve ciúmes das tuas meninas? Não? Vês, é uma mulher superior! Tiro-lhe o chapéu!

Sabes o que o Daniel me disse no outro dia? Que gostava que tu me pintasses, um dia. Imagina! Mas tu não fazes retratos, pois não? Fazes? Ah, não sabia… então talvez queiras pensar nisso, que tal? Seria uma menina com mais rugas e mais quilos, mas é o que se pode arranjar. E a Luísa, achas que não se importaria? Tudo menos arranjar-te problemas domésticos… E não sei se quero, pensando bem. Tu és perigoso, eras bem capaz de roubar-me a alma para a pôr no quadro. Assim uma espécie de Dorian Gray, estás a ver? E eu quero envelhecer como os outros mortais, não quero uma tela a envelhecer por mim. Ah, ainda bem que te faço rir, estavas tão sério quando saímos do hotel....

Olha, em resumo, adorei as tuas meninas e quero uma delas no meu quarto. Será um ménage a trois a propor ao Daniel. Um piscar de olho à transgressão, para aquela cabeça conservadora! Pronto. Com isto acho que te digo tudo. Estás preocupado connosco? Porquê? Não há motivos para isso. Não sei explicar-te por que razão, mas a verdade é que adoro o teu amigo, mesmo sabendo que ele é completamente diferente de mim. E eu sou um camaleão, adapto-me com facilidade. Desde que tenha os meus escapes, de vez em quando… é por isso que me fazem tão bem estes fins-de-semana fora de casa. Percebes isso, não é? Mas, voltando ao assunto, acontece que a tua menina no nosso quarto há-de ser um elemento de provocação, exactamente o que eu quero. E ele gosta de ser provocado, garanto-te. Como a Luísa? Vês, é o que eu te digo: eles são parecidos, nós também. Os extremos atraem-se, o que é próximo não nos parece tão apelativo. Está decidido, a tua menina vem morar connosco! Mas, espera aí, não estou a pedir-te presentes. Eu sei que vives disso, e felizmente posso pagar-te. Só te peço que me deixes ser a primeira a escolher, está bem? Estou a pensar exactamente numa delas, a que se funde com a lua, sabes? É aquela com que mais me identifico. Pode ser para mim, essa? Pode? Obrigada, és um amor.

Bem, agora confesso que já estou um bocadinho cansada. Gosto muito de andar, mas há mais de uma hora que não paramos! Que tal sentarmo-nos aqui nesta esplanada? Tomamos café e esperamos pelos nossos dorminhocos, que devem estar ainda no segundo sono… Que horas são? Só?? Meu Deus, fomos mesmo madrugadores! Temos muito tempo ainda pela frente antes que eles apareçam. E ainda bem, porque temos tanto para conversar…


sexta-feira, 13 de julho de 2007

O Pinotauro

Ouvido Absoluto


Quando eu era criança, a minha professora de Educação Musical "diagnosticou-me" um ouvido absoluto. Na altura eu não fazia a menor ideia do que isso queria dizer, e, com medo de ser gozada pelos outros miúdos ou de que aquilo fosse alguma espécie de doença, nunca falei do assunto a ninguém. Acho que nem os meus pais souberam, pelo menos por mim.
Com o tempo, porém, fui tendo a confirmação da sentença da professora: descobri que tinha algumas capacidades especiais para identificar notas e sons, nas circunstãncias mais absurdas (lembro-me, por exemplo, de reconhecer a nota musical a que correspondia o som de uma porta a bater), mas, com os meus parcos conhecimentos teóricos de música - mal aprendi a ler uma pauta - limitava-me a fazer habilidades para os amigos.
Uma delas, ainda hoje uma fatalidade que não consigo evitar, é a de descobrir plágios musicais. É impossível escapar-me a semelhança de uma sequência de notas musicais (por mais curta que seja) com outra que tenha ouvido anteriormente.
Dou um exemplo: um dia, num concerto a que assistia (a maravilhosa Paixão Segundo S. Mateus, de Bach), enquanto o coro entoava Ich will hier bei dir stehen, eu só conseguia ouvir uma outra letra: Many's the time I've been mistaken, and many times confused...

Reconhecia, abismada, por detrás da pungência grandiosa daquelas vozes, uma outra, minha velha conhecida - a de Paul Simon - numa das minhas melodias preferidas de sempre, American Tune. Sempre achei esta canção absolutamente superior, e finalmente percebi porquê: foi composta por Bach!! Mal cheguei a casa, fui procurar, nos créditos do CD de Paul Simon, o nome do autor original, e... nada! Desceu muito na minha consideração nesse dia, embora continue a gostar muito das suas canções. Paul Simon é um excelente compositor, sem dúvida, mas Bach ... é Bach.*

Esta minha particularidade faz também que qualquer canção me fique no ouvido à primeira vez que a ouço, o que nem sempre é cómodo ou desejável. A chamada "música pimba", de absorção garantida mesmo para os ouvidos mais abstrusos, é um verdadeiro martírio para mim: as melodias, básicas e enjoativas, ficam a martelar-me o cérebro até à exaustão, e só me livro delas substituindo esses sons por outros que me agradem mais.

Tenho aquilo a que se chama uma voz afinada, embora não faça grande uso dela nem nunca a tenha desenvolvido propositadamente. A música faz parte da minha vida de uma forma natural, empírica mas essencial. Não imagino o mundo sem ela, mas muitas pessoas com tímpanos normais dirão o mesmo. Ou seja, o meu ouvido absoluto não me serve absolutamente para nada de útil. É uma espécie de medalha que tenho direito a usar ao peito, tal como muitas outras pessoas, afinal. Sei hoje que o fenómeno não é tão raro como eu pensava, e, por algum obscuro motivo, essa constatação deixa-me aliviada. Podia ter explorado este dom? Sim, provavelmente. Mas não o fiz, e agora já não vou a tempo.
Procurei uma explicação, que fosse mais ou menos científica, para esta minha característica. Encontrei esta, perfeitamente acessível:

«Ouvido absoluto é o nome da capacidade que tem um única pessoa em dez mil de identificar notas musicais sem precisar ouvir primeiro outra nota conhecida como comparação. De onde vem essa capacidade? Do cérebro, e não dos ouvidos, como o nome sugere. A região na superfície do cérebro que processa os sons da música é maior em músicos do que em outras pessoas, e especialmente grande em músicos com ouvido absoluto. Isso sugere que a capacidade de identificar notas musicais depende da "quantidade" de cérebro disponível para "ouvir" a música que entra pelos ouvidos.

Mas por que só algumas pessoas têm ouvido absoluto?

Há, pelo menos, três possibilidades - e talvez a explicação, no final, seja uma mistura das três. Primeiro, a genética parece ajudar: pessoas com ouvido absoluto costumam ter parentes com a mesma habilidade (do mesmo modo, a "surdez musical", ou incapacidade de detectar uma nota desafinada, também parece ser genética!). A segunda possibilidade é que ouvido absoluto se adquire com a prática. Seria uma questão de treino, mesmo: você ouve e identifica notas musicais tantas e tantas vezes que seu cérebro acaba guardando uma "memória" permanente do som de cada nota associada ao seu nome. Com essa memória guardada lá dentro da cabeça, deixa de ser necessário comparar uma nota a outra que você sabe que é o lá, por exemplo, para identificá-la. Quanto à terceira possibilidade - pasme: é possível que todo mundo nasça com ouvido absoluto e acabe perdendo essa habilidade, se ela não for mantida ou desenvolvida com a música ou pelo aprendizado de línguas, como o chinês, onde o significado das palavras depende do seu "som musical" preciso. Quem sabe, então, você já teve ouvido absoluto e nem sabia?»

Fonte: Suzana Herculano-Houzel, Departamento de Anatomia, UFRJ
*Nota: Ouçam os dois clips audio pela ordem em que estão apresentados, e digam-me se não tenho razão.



(Versão de Eva Cassidy do American Tune, "de Paul Simon")

(A melodia original, de Bach)