sábado, 14 de julho de 2007

Passeio matinal


A amizade é o amor sem asas.
Lord Byron


Pedes-me uma crítica aos teus quadros e isso deixa-me simultaneamente lisonjeada e nervosa, porque o sinto como uma responsabilidade. Vá lá, deixa-me ser presunçosa e acreditar que tenho alguma influência em ti… em ti e na tua obra, o que é ainda maior presunção. É quase como se me sentisse uma musa (coisa que nunca fui para ninguém), sabes, e gosto de pensar que poderia ser a tua… Já o sou, dizes tu? Deixas-me sem palavras, meu amigo. E não faças beicinho. Não, não estou a estragar tudo por te chamar meu amigo. O erotismo não é para aqui chamado, pois não? Sabes que gostei de ti desde o primeiro momento em que nos conhecemos. És, de todos os amigos do meu marido, aquele que tem mais a ver comigo, de longe. Os outros não me dizem muito, confesso, e parece-me que a simpatia é recíproca. Ainda estão todos entrincheirados do lado da ex… não é isso? Mas eu não tive culpa nenhuma, conheci o Daniel já depois do divórcio dele! Não o roubei a ninguém, porque é que eles me hostilizam? Ah, que ideia, deixa-te de galanteios. Não têm inveja nenhuma do Daniel. Têm os seus casamentos, maus ou bons, não quero meter-me nisso. Mas nenhum deles é como tu, abriste-me os braços desde que eu apareci. Não, não estou a tentar seduzir-te… muito menos agora, que acabei de casar com o teu melhor amigo!! Ris-te? Ah, bom, fico mais aliviada, esse teu sentido de humor é o que te salva sempre. Ou melhor, é o que nos salva, a ti e a mim. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, o Daniel tem muito pouco sentido de humor. E a Luísa também, não é? Como é que fomos arranjar duas pessoas tão diferentes de nós? Sim, claro, deve ter sido por isso mesmo, tens razão. Os extremos atraem-se, sempre foi assim…

Mas ainda bem que combinámos esta escapadela a quatro. Ainda por cima ao Porto, que é uma cidade de que eu gosto imenso. Não me digas que não conheces o Porto?! Ah, tens que dar uma volta comigo, talvez amanhã de manhã. Há certos sítios que são obrigatórios: Nevogilde, por exemplo, um bairro delicioso que parece um bocadinho do Minho incrustado em plena cidade. E os jardins de Serralves (mas isso deves conhecer, não?), a Baixa e a Ribeira. A Ribeira é uma beleza, e agora que foi toda recuperada está um brinquinho. Antes estava em ruínas, era um bocado deprimente e nem se percebia como é tão bonita! Mas conheces a Foz, claro. Faz-me sempre lembrar Cannes ou Nice, com as palmeiras e o passeio empedrado com varandim ao longo do mar, à moda da Côte. Podemos ir lá jantar hoje, que tal? Um primo do Daniel tem um restaurante na praia do Homem do Leme, onde se comem uns petiscos de comer e chorar por mais! Deves conhecê-lo, não? É um baixinho, casado com a Madalena, irmã da Teresa e do Luís Gonçalo. Mas, espera aí, ela é que é prima do Daniel. Ah, dela lembras-te? Pois, solteiríssima, nos tempos áureos em que ainda vivia naquele palacete da Lapa, que agora é um hotel. Belos tempos, dizes bem! Pois vamos hoje jantar com eles, está decidido.

É, o Porto é uma cidade especial - grave e séria - como canta o Rui Veloso. Gosto muito de vir cá, embora não gostasse de cá viver. Quem se habitua à mágica luz de Lisboa nunca mais consegue trocá-la por outra, sobretudo pela do Porto, que é bem mais sombria. Tu, então, que és pintor… mas vir até cá, de vez em quando, é um prazer. Calhou mesmo bem a inauguração desta tua exposição tão longe de casa, com uma razão destas o Daniel não teve coragem de dizer que não. E um fim-de-semana destes de vez em quando é essencial para o meu equilíbrio, dou-me mal com as rotinas. Outro cenário, outros cheiros, outras cores… percebes o que quero dizer? Percebes, claro. O pior é arrancar o Daniel de casa, ele é a antítese disto. Mas enfim, até não me posso queixar. A avaliar pelo que todos me dizem dele, parece que tenho conseguido verdadeiros milagres… e o mais engraçado é que ele acaba sempre por gostar, depois de conseguir vencer a inércia inicial. Às vezes não o entendo mesmo. Olha, são as vantagens de um casamento relâmpago, sem fase de incubação: ainda estamos a descobrir-nos! Já passaste essa fase há muito tempo? Pois, calculo que sim. Estás casado há quantos anos? Vinte e três?! Olha, eu, então, nem somados… deixa-me ver: foram nove com o Pedro Jorge (conheceste-o, não é verdade? Nessa época era diplomata de carreira, depois foi ministro), mais quatro – quase cinco – com o Carlos, e desta vez ainda não fiz um ano! Como vês… ah, mas agora é para sempre! Não te rias assim, olha que me vou ofender contigo. Eu bem sei que pensei o mesmo das outras vezes, mas agora estou mais madura. E mais cansada, também, para recomeçar tudo outra vez. Não, desta vez é para a vida. És engraçado, tu. Cultivas esse ar excêntrico mas afinal tens um casamento duradouro e sólido há uma data de anos. Qual é o segredo? Juro-te, gostava muito de saber. Pois, eu sei que não há receitas. Mas é bom saber que alguém, de vez em quando, encontra a sua própria fórmula. Porque tu encontraste, disso não tenho dúvidas. O teu casamento não é uma dessas prisões por obrigação ou preguiça de mudança. Não. Eu bem vejo que a Luísa te faz feliz. Vives satisfeito como um gato, confessa! A vossa relação é bonita de se ver. És talvez o caso mais flagrante de contraste que eu conheço: um artista – e dos bons! – com todas as inquietações e angústias que fazem nascer qualquer tipo de arte, e ao mesmo tempo um marido equilibrado e fiel, num casamento que se pode considerar burguês! Não me decepciones com essas graçolas, eu quero acreditar que és fiel à tua mulher… e também sei que não és rico, mas vives bem, caramba! A Luísa herdou uma bela quantia e soube aplicá-la bem, não precisa de trabalhar, e quanto a ti… os teus quadros vendem-se como pãezinhos quentes. Há muitos casais burgueses que vivem com metade dos vossos rendimentos…

Que sorte tivemos com o tempo! No meio deste Inverno chuvoso e triste, um fim-de-semana de sol magnífico! Quem havia de dizer? Até trouxe um livro, pensando que iríamos ficar enfiados no hotel. “Filhos da Sombra”, já leste? Do Joaquim Torres, disseram-me que é muito bom. Mas ainda nem o abri, o que me apetecia mesmo era deitar-me na relva a apanhar sol. Os nossos preguiçosos nem sabem o que estão a perder por ter ficado na cama esta manhã! Coitado, o Daniel anda cansadíssimo, foi bom ter aproveitado para dormir. Aquele hospital dá cabo dele. Chega a casa morto de cansaço, mal abre a boca. E a Luísa dorme sempre de manhã, não é? Faz bem, deve ser por isso que tem aquela pele óptima… que inveja! É tão bonita, a tua mulher. Não admira que continues a amá-la, tu que és mais sensível à estética do que a maioria das pessoas. Deixa-te de histórias, eu sei que a amas. E também sei que não é só pela beleza dela… há qualquer coisa naquela mulher que te pacifica, que te mantém ligado à terra. Se não fosse ela… acho que voavas, que te sumias no ar como as tuas meninas.

Está bem, pronto, falemos então delas. Se queres mesmo saber, a tua pintura causou-me uma impressão forte, gostei francamente. Reconheço que não é para qualquer ambiente. As decorações clássicas, mais pesadas, sufocariam as tuas meninas etéreas, tão delicadas, a gritar por espaços claros, panos esvoaçantes e janelas abertas a deixar entrar a luz…

Deviam fazer-se ambientes para quadros, e não o contrário. A propósito, é pena que elas estejam enclausuradas na cave da galeria. Precisam de sol, são como eu. Mas, voltando ao que me sugeriu a tua pintura, é engraçado (mas afinal acontece com todas as formas de expressão) como ela tem várias leituras possíveis, a vários níveis, e se calhar nenhuma dessas leituras é a que te inspirou. A expressão plástica tem destas coisas, depende dos olhos que a vêm, não é? O que estou a fazer é a dar-te a minha interpretação, o que me veio à cabeça quando vi os teus quadros. Mas não a leias como a de um crítico de arte, é puramente emocional e sem quaisquer fundamentos técnicos, obviamente.

Primeiro que tudo ressaltou a tua extrema sensibilidade, eu diria que quase feminina. Achei tocante a delicadeza, a leveza, a pureza que os teus quadros respiram. E não tem nada a ver com infantilidade, pelo contrário. A paz é um longo caminho de maturidade. És um homem maduro, quer queiras quer não! Em todos os sentidos… desculpa, estava a brincar outra vez e tu pediste-me uma reflexão séria. Pronto. Apaga a última frase. Agora a sério, faço-te o maior elogio que poderia fazer-te: as tuas meninas lembram-me as do Botticelli. Juro, e olha que eu sou louca pelo Botticelli. É o meu pintor favorito. Mas é verdade: são leves e puras como as dele. Não te babes. Eu sei que ele é um mestre, e depois? Não posso achar que tu também és? Claro, eu sei que há também séculos de distância entre elas, mas, de alguma maneira que não te sei explicar, vejo as tuas como reencarnações das outras. Não, não como cópias. É como se todas elas tivessem nascido de conchas, como a Vénus. Ao mesmo tempo são completamente diferentes. Como segunda leitura, vejo esse teu lado esotérico, toda essa simbologia que há nos arcos e portais de onde elas saem, das luas para que olham, das estradas que percorrem sem pôr os pés no chão. Para os não iniciados, são meros elementos decorativos e cumprem muito bem essa função. Mas para quem tem umas luzes… ah, elas são sereias, cantam para nos encantar e as seguirmos! Até onde?, pergunto-me. É inquietante pensar nisso… O Daniel achou-as muito bonitas, só isso. E inveja-te por causa dos modelos que lhes deram origem… não estou a cometer nenhuma inconfidência, foi ele mesmo que to disse! Ele também trabalha com corpos, é verdade, mas raramente são perfeitos e, pior do que isso, estão doentes. É muito diferente, não compares. Mas aquilo de que ele não se apercebeu é que as meninas dos teus quadros vivem noutra dimensão. Não faz segundas leituras. É um pragmático, o Daniel. Deformação profissional, conta só com o que é palpável… e a Luísa, o que acha delas? Nunca te perguntou porque pintas meninas diáfanas há tanto tempo, porque é esse o teu único tema? Não te faz perguntas, nunca? Vês, é o que eu te digo, ela é que é uma mulher inteligente… eu, com as minhas inseguranças, já te teria infernizado a vida por causa disso… haveria de comparar-me com elas constantemente e chegar sempre à conclusão de que eram mais novas, ou mais bonitas… sou idiota, eu sei, não precisas de mo dizer na cara! Não, não sou bonita nem nova, estás a ser caridoso. Ah, agora fazes-me corar, o Daniel nunca me disse uma frase tão bonita! És um poeta… podias ensinar ao teu amigo algumas dessas tiradas de charme! Mas, agora a sério: a Luísa nunca teve ciúmes das tuas meninas? Não? Vês, é uma mulher superior! Tiro-lhe o chapéu!

Sabes o que o Daniel me disse no outro dia? Que gostava que tu me pintasses, um dia. Imagina! Mas tu não fazes retratos, pois não? Fazes? Ah, não sabia… então talvez queiras pensar nisso, que tal? Seria uma menina com mais rugas e mais quilos, mas é o que se pode arranjar. E a Luísa, achas que não se importaria? Tudo menos arranjar-te problemas domésticos… E não sei se quero, pensando bem. Tu és perigoso, eras bem capaz de roubar-me a alma para a pôr no quadro. Assim uma espécie de Dorian Gray, estás a ver? E eu quero envelhecer como os outros mortais, não quero uma tela a envelhecer por mim. Ah, ainda bem que te faço rir, estavas tão sério quando saímos do hotel....

Olha, em resumo, adorei as tuas meninas e quero uma delas no meu quarto. Será um ménage a trois a propor ao Daniel. Um piscar de olho à transgressão, para aquela cabeça conservadora! Pronto. Com isto acho que te digo tudo. Estás preocupado connosco? Porquê? Não há motivos para isso. Não sei explicar-te por que razão, mas a verdade é que adoro o teu amigo, mesmo sabendo que ele é completamente diferente de mim. E eu sou um camaleão, adapto-me com facilidade. Desde que tenha os meus escapes, de vez em quando… é por isso que me fazem tão bem estes fins-de-semana fora de casa. Percebes isso, não é? Mas, voltando ao assunto, acontece que a tua menina no nosso quarto há-de ser um elemento de provocação, exactamente o que eu quero. E ele gosta de ser provocado, garanto-te. Como a Luísa? Vês, é o que eu te digo: eles são parecidos, nós também. Os extremos atraem-se, o que é próximo não nos parece tão apelativo. Está decidido, a tua menina vem morar connosco! Mas, espera aí, não estou a pedir-te presentes. Eu sei que vives disso, e felizmente posso pagar-te. Só te peço que me deixes ser a primeira a escolher, está bem? Estou a pensar exactamente numa delas, a que se funde com a lua, sabes? É aquela com que mais me identifico. Pode ser para mim, essa? Pode? Obrigada, és um amor.

Bem, agora confesso que já estou um bocadinho cansada. Gosto muito de andar, mas há mais de uma hora que não paramos! Que tal sentarmo-nos aqui nesta esplanada? Tomamos café e esperamos pelos nossos dorminhocos, que devem estar ainda no segundo sono… Que horas são? Só?? Meu Deus, fomos mesmo madrugadores! Temos muito tempo ainda pela frente antes que eles apareçam. E ainda bem, porque temos tanto para conversar…


8 comments:

Mad disse...

Como identificar a próxima conversa perigosa que se tiver inocentemente com um amigo do legítimo. Útil. Adorei.

ana v. disse...

É, às vezes a inocência é um autêntico campo minado. São precisos mil cuidados e um bom detector de metais para atravessá-lo sem grandes sobressaltos. E mesmo assim nem sempre se consegue, claro.

Mad disse...

Reli o texto e decidi rectificar o meu comentário anterior, em que chamei "inocente" à conversa. Mas ela não tem nada de inocente, pois não?

ana v. disse...

Pode até ter... isto é ficção, não sabemos o que se passou depois deste fim de semana. Mas lá que é perigoso, isso é.

ana v. disse...

Ouviste os dois clips de audio do post abaixo? E então, eu não tinha razão?

Mad disse...

Tinhas, por incrível que pareça. É caso para mandar um emailzinho à SPA lá do sítio... se bem que Bach já está no domínio público há uns séculos.

david santos disse...

Bom trabalho, parabéns. Dos mais profundos que tenho encontrado.
Tem um bom fim-de-semana

ana v. disse...

Obrigada pelas suas palavras, David. E parabéns também pelo seu blog: nunca tinha visto um espaço tão internacional nem uma caixa com 453 comentários... é obra!

Ana