sexta-feira, 13 de julho de 2007

Ouvido Absoluto


Quando eu era criança, a minha professora de Educação Musical "diagnosticou-me" um ouvido absoluto. Na altura eu não fazia a menor ideia do que isso queria dizer, e, com medo de ser gozada pelos outros miúdos ou de que aquilo fosse alguma espécie de doença, nunca falei do assunto a ninguém. Acho que nem os meus pais souberam, pelo menos por mim.
Com o tempo, porém, fui tendo a confirmação da sentença da professora: descobri que tinha algumas capacidades especiais para identificar notas e sons, nas circunstãncias mais absurdas (lembro-me, por exemplo, de reconhecer a nota musical a que correspondia o som de uma porta a bater), mas, com os meus parcos conhecimentos teóricos de música - mal aprendi a ler uma pauta - limitava-me a fazer habilidades para os amigos.
Uma delas, ainda hoje uma fatalidade que não consigo evitar, é a de descobrir plágios musicais. É impossível escapar-me a semelhança de uma sequência de notas musicais (por mais curta que seja) com outra que tenha ouvido anteriormente.
Dou um exemplo: um dia, num concerto a que assistia (a maravilhosa Paixão Segundo S. Mateus, de Bach), enquanto o coro entoava Ich will hier bei dir stehen, eu só conseguia ouvir uma outra letra: Many's the time I've been mistaken, and many times confused...

Reconhecia, abismada, por detrás da pungência grandiosa daquelas vozes, uma outra, minha velha conhecida - a de Paul Simon - numa das minhas melodias preferidas de sempre, American Tune. Sempre achei esta canção absolutamente superior, e finalmente percebi porquê: foi composta por Bach!! Mal cheguei a casa, fui procurar, nos créditos do CD de Paul Simon, o nome do autor original, e... nada! Desceu muito na minha consideração nesse dia, embora continue a gostar muito das suas canções. Paul Simon é um excelente compositor, sem dúvida, mas Bach ... é Bach.*

Esta minha particularidade faz também que qualquer canção me fique no ouvido à primeira vez que a ouço, o que nem sempre é cómodo ou desejável. A chamada "música pimba", de absorção garantida mesmo para os ouvidos mais abstrusos, é um verdadeiro martírio para mim: as melodias, básicas e enjoativas, ficam a martelar-me o cérebro até à exaustão, e só me livro delas substituindo esses sons por outros que me agradem mais.

Tenho aquilo a que se chama uma voz afinada, embora não faça grande uso dela nem nunca a tenha desenvolvido propositadamente. A música faz parte da minha vida de uma forma natural, empírica mas essencial. Não imagino o mundo sem ela, mas muitas pessoas com tímpanos normais dirão o mesmo. Ou seja, o meu ouvido absoluto não me serve absolutamente para nada de útil. É uma espécie de medalha que tenho direito a usar ao peito, tal como muitas outras pessoas, afinal. Sei hoje que o fenómeno não é tão raro como eu pensava, e, por algum obscuro motivo, essa constatação deixa-me aliviada. Podia ter explorado este dom? Sim, provavelmente. Mas não o fiz, e agora já não vou a tempo.
Procurei uma explicação, que fosse mais ou menos científica, para esta minha característica. Encontrei esta, perfeitamente acessível:

«Ouvido absoluto é o nome da capacidade que tem um única pessoa em dez mil de identificar notas musicais sem precisar ouvir primeiro outra nota conhecida como comparação. De onde vem essa capacidade? Do cérebro, e não dos ouvidos, como o nome sugere. A região na superfície do cérebro que processa os sons da música é maior em músicos do que em outras pessoas, e especialmente grande em músicos com ouvido absoluto. Isso sugere que a capacidade de identificar notas musicais depende da "quantidade" de cérebro disponível para "ouvir" a música que entra pelos ouvidos.

Mas por que só algumas pessoas têm ouvido absoluto?

Há, pelo menos, três possibilidades - e talvez a explicação, no final, seja uma mistura das três. Primeiro, a genética parece ajudar: pessoas com ouvido absoluto costumam ter parentes com a mesma habilidade (do mesmo modo, a "surdez musical", ou incapacidade de detectar uma nota desafinada, também parece ser genética!). A segunda possibilidade é que ouvido absoluto se adquire com a prática. Seria uma questão de treino, mesmo: você ouve e identifica notas musicais tantas e tantas vezes que seu cérebro acaba guardando uma "memória" permanente do som de cada nota associada ao seu nome. Com essa memória guardada lá dentro da cabeça, deixa de ser necessário comparar uma nota a outra que você sabe que é o lá, por exemplo, para identificá-la. Quanto à terceira possibilidade - pasme: é possível que todo mundo nasça com ouvido absoluto e acabe perdendo essa habilidade, se ela não for mantida ou desenvolvida com a música ou pelo aprendizado de línguas, como o chinês, onde o significado das palavras depende do seu "som musical" preciso. Quem sabe, então, você já teve ouvido absoluto e nem sabia?»

Fonte: Suzana Herculano-Houzel, Departamento de Anatomia, UFRJ
*Nota: Ouçam os dois clips audio pela ordem em que estão apresentados, e digam-me se não tenho razão.



(Versão de Eva Cassidy do American Tune, "de Paul Simon")

(A melodia original, de Bach)

16 comments:

Anónimo disse...

Também tenho ouvido absoluto :
absolutamente incapaz de distinguir as notas.

Mad disse...

Lá tá ela a armar-se... :)

ana v. disse...

peri,
pois, e o seu serve exactamente para o mesmo que o meu!

ana v. disse...

mad,
é verdade mesmo. sou uma caixinha de surpresas...

Anónimo disse...

É de se ficar parvo! E ainda por cima gosto tanto dos dois.
Mas há mais. O próprio Mozart tem duas composições que têm trechos iguais - vu descobrir quais. E um dos êxitos da Shakira ("underneath your clothes", acho) é igual a um de uma cantora dos anos 60. E ainda há o hino do Liechtenstein que é igual ao de Inglaterra e o da Alemanha que é plagiado de Handel. Além dos plágios da Clara Pinto Correia, clafro, mas esses foram por causa da pressa do editor!!!!.
Mas o melhor foi um livro que comprei há dias, numa feira da FNAC, assim ao calhas (não resisto a ir a uma livraria e não trazer um livro de poesia de um desconhecido), de uma poetisa que faz letras de fado (Maria Manuel Cid) e que é prefaciada pelo João Ferreira da Rosa.
Pois um dos poemas é, nem mais nem menos (sem qualquer referência no livro inteiro ao autor): "O poeta é um fingidor".
Realmente, esta poetisa (que não pessoa, certamente) é uma fingidora...
Acho que habita na Chamusca, mas pelo menos, para mim, já está mais do que chamuscada - verdadeiramente "charbonisé".

Anónimo disse...

Mário,
É uma conhecidíssima letrista de fado e eu não fazia ideia disso. Não conheço o livro. Plagiar o Pessoa é ter muita lata, realmente! Pus aqui uma glosa justamente ao "poeta fingidor", da autoria do Jayme Serva (brasileiro, o blog dele está nos meus links) mas isso é outra história completamente diferente, é uma brincadeira assumida e o original está devidamente identificado. Por acaso tem imensa graça, já leste?

bjs
ana

Vitória disse...

Para mim tem diferenças...não tenho ouvido absoluto.Só toquei piano dos 5 aos 8 anos,diariamente.
E com pauta...
Mas acredito que possa haver influências,não sei...De qq modo foi interessante testar-me:)

Teresa disse...

Em primeiro lugar, apresento-me: há alguns blogues em que nos cruzamos, mas comecei a vir aqui quando percebi que lias o Beatles Forever! (bem abandonado tem sido, eu sei).

Nunca comentei, mas já li muito do PV, que está no meu Google Reader. Mas este post, que me tinha escapado, é irresistível comentar.

Alvíssaras! Também eu tinha captado a igualdade (duvidamos que tenha sido plágio, não é?) entre essa passagem da Paixão Segundo S. Mateus e uma certa passagem do obcecante American Tune. Caso tenhas dúvidas, convido-te a espreitar o post da Gota de Ran Tan Plan de 11 de Setembro de 2006, tinha o blogue apenas cinco dias de existência, e o pouco que lá digo sobre essa enorme música.

Terei eu esse tal ouvido absoluto? Não sei, mas tenho captado outros plágios (e esses já me fazem desconfiar, porque não são assinados por um Paul Simon) dos quais te deixo aqui dois:

1. Como somos raparigas da mesma criação, deves conhecer uma música chamada All by Myself (Eric Carmen); quem está tão familiarizada com Bach que conhece tão bem uma obra que intimida quase toda e gente, conhece certamente a obra tão mais popular que é flagrantemente plagiada (e neste caso é ESCANDALOSO, se quiseres depois conto-te uma história engraçada feita ao contrário - fiz o teste com uma pessoa que não sabia nada de música clássica mas que era uma grande conhecedora de pop e rock; pus-lhe o andamento em causa da obra X do compositor Y, com um autoritário "em que é que isto te faz pensar?" A resposta foi a que eu esperava.

2. Novamente com o mote na idade, temos uma muito curta passagem do Daydream dos Wallace Colection, que continuo a adorar como quando tinha oito anos. Meia dúzia de notas remetem-nos para uma obra clássica de um grande compositor.

Seja como for, fiquei de queixo à banda por teres dado com o American Tune, indubitavelmente a mais difícil de todas.

Não vou reler, desculpa eventuais gralhas.

ana v. disse...

Olá Teresa, "rapariga da minha criação"!

Claro que já tinha dado por esses dois, para mal dos meus pecados: o primeiro é o concerto nº2 (salvo erro) de Rachmaninov; e o segundo é Tchaikovsky, descaradamente.
Acho que acertei, não?

Beijinhos

Teresa disse...

BINGO!!! :)
Em Rachmaninov (sim, é o º 2) é ainda mais descarado, porque é uma extensa parte.

ana v. disse...

Digo-te que é irritante apanhar estes plágios, que já me deram algumas decepções com músicos que eu respeitava. Acho que muitos o fazem, afinal de contas. Mas devo dizer, em abono da verdade, que às vezes citam a fonte, dizendo que a música "foi inspirada em..." ou qualquer coisa do género.
Por alguma razão ficam no ouvido das pessoas, sem apelo nem agravo. Entram, directamente, numa memória antiga que devemos ter, suponho que inconsciente. E por isso são uma receita comercial garantida.

Teresa disse...

No caso do American Tune acho que foi uma mera coincidência (acho mesmo, um Paul Simohn nunca precisaria disso), nos Wallace Collection, mesmo sendo indulgente... já torço o nariz. No tal Eric Carmen, acho que vergonhosamente deliberado.

E há também uma coisa (nem me lembro quem cantava, tenho-a para aí, na minha pasta de "pérolas do kitsch") chamada Midnight Blue, que mais não é do que a transcrição fiel do segundo andamento da Patética de Beethoven...

ana v. disse...

Essa acho que não conheço.
Patético, não?

Também não quero acreditar que o paul Simon tenha feito isso deliberadamente. Ele escreveu óptima música, sem precisar disso. Mas ficará sempre a dúvida...

Teresa disse...

Acabo de ver que tens aqui endereço. Se encontrar envio-te (não me lembro mesmo do nome das criaturas, era uma coisa que tocava muito no Stone's lá por 83, para minha grande repugnância), mas suponho que uma busca no Google me fará chegar lá num fósforo.

Ah! E no meio desta animada troca de agravos... acabo de trazer à superfície uma informação que eu tinha esquecido: és irmã da minha Mad! lol

Teresa disse...

Está a seguir. ;)

Be afraid, be very afraid.

Deixa-me ilibar o Paul Simon, que de parceria com a voz angelical do Art entram na galeria dos homens da minha vida: é história para o BF! O Paul McCartney e o Yesterday...
Agora tenho de ir dormir, dia complicado amanhã...
Beijo.

ana v. disse...

Claro que sou!
beijinhos, dorme bem