Escolhi estes pequenos trechos de um dos Contos de Clarice Lispector - Os Desastres de Sofia* - que descreve, com suprema mestria, a fantasia aterradora e hipnótica do primeiro amor e da primeira vertigem sensual. Neste caso, tudo inspirado por um professor (fascinado com uma redacção criativa da aluna precoce), e ensombrado por sentimentos de confusão, culpa e vergonha. Deliciem-se com este tratado de psicologia da adolescência:
«Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. (...)
Calmo como antes de friamente matar, ele disse:
- Chegue mais perto...
Como é que um homem se vingava? Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida.(...)
Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. Disfarcei olhando o tecto, o chão, as paredes, e mantinha a mão estendida porque não sabia como recolhê-la. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca o soubera. Naquele tempo eu pensava que tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência atormentada do pecado me redimia do vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo: eu não queria esse agradecimento que não só era a minha maior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía.(...)
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência... Com a mão apertando a boca, eu corri pela poeira do parque.»
Nota: Se não tiver o livro (Contos, Clarice Lispector, editora Relógio d'Água) pode ler este* conto na íntegra, aqui.
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