sábado, 30 de junho de 2007

O melhor Brasil


Excelente, como já se adivinhava, o concerto de ontem na Culturgest. Fiz o possível por divulgá-lo - e juro que nada tenho a ver com as receitas do espectáculo! - porque sei como esse é o calcanhar de Aquiles da agenda cultural portuguesa. A casa estava bem composta, mas não cheia, para este concerto único em Lisboa.
Foram cerca de duas horas de pura magia, e no final a rendição absoluta de quem teve a sorte de assistir. Zé Miguel Wisnik, com as suas convidadas Ná Ozzetti e Jussara Silveira, semeou estrelas no ar num registo intimista e cúmplice. Palavras belas vestidas de músicas de igual qualidade, tocadas por músicos inspirados e virtuosos. Momentos de beleza, de um nível pouco visto por cá.

Burricada no deserto


Acabo de ver nas notícias da noite que os habitantes de Almada trocaram, por um dia, o seu transporte habitual pelo saudoso burrico, tão português. Só para evocar velhos tempos, em que estrangeiras enchapeladas e vestidas de folhos e rendas sentavam os traseiros turistas em albardas lusas, e assim se deixavam maravilhar pela paisagem verdejante e o mar azul da nossa Caparica.
Mas tudo isso foi antes do big bang fatal, que transformou a margem sul no deserto que é hoje. Agora, infelizmente, só o camelo aguenta a travessia árida das areias escaldantes que se estendem até à entrada da ponte.
E foi por isso, afinal, que os burros passaram a ser uma raça em extinção.

Heróis


Receita para fazer um herói


Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
e em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
lentamente,
duma certeza aguda, irracional,
intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
agite-se um pendão
e toque-se um clarim.

Serve-se morto.



Passam hoje 48 anos sobre a morte de Reinaldo Ferreira, um nome tão injustamente esquecido no nosso panorama literário.

Um único livro, póstumo (de título Poemas, cuja primeira edição foi lançada 1 ano após a sua morte), condensa toda a obra conhecida do poeta. Nas 3 edições que dele se fizeram estão incluídos textos analíticos de Eugénio Lisboa, José Régio e Guilherme de Melo, que lhe prestam a devida homenagem. Aqui fica o poema Receita para fazer um Herói, um dos meus preferidos.

Para lembrar um grande poeta.

Where the Hell is Matt?

Um Aluno de Apolo a quem saíu o Euromilhões??

sexta-feira, 29 de junho de 2007

O N que falta


Mais um N, senhor comendador, e teria nome de gente.
Não salto à liça para defender Mega Ferreira porque também não tenho particular simpatia por ele, e também porque ele não precisa das minhas defesas para nada. Mas o que quero dizer é que o senhor comendador, desde que tomou o país de assalto, todos os dias nos reserva algumas surpresas. Por causa de umas bandeiras não penduradas, acabou por pendurar nos paus-de-bandeira do CCB um cesto inteiro de roupa suja - ou mal lavada - em público. Não sei quem tinha razão nem é isso que está em causa. O que sublinho aqui é a falta de... tudo, que o senhor comendador revelou com a peixeirada que fez.
Nessa simples letrinha N, que alguém se esqueceu de acrescentar ao seu nome quando o registou, devem ter ficado a educação, a humildade, a discrição, enfim, a Nobreza que um verdadeiro mecenas das artes deve ter. Para si, o N só deve querer dizer Negócio. E para isso cá estamos nós todos, senhor comendador.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Pérolas na Blogosfera I


"Biblioteca dermo-estética:

Não enchera a casa de livros porque os tencionasse ler ou fosse culto ou para impressionar visitas. Queria apenas aprender a envelhecer. E não havia no mundo criatura a fazê-lo com mais estilo que aquelas folhas de papel agrupadas, a escurecer à velocidade dos dias e a desvanecer-se nos cantos como quem decide ir deixando de existir sem ninguém saber."

Encontrado n'O Boato, o blog de Alexandre Borges.
Há mais pérolas neste colar. Vão lá espreitar, vale a pena.

Os amigos da onça


Extraordinária notícia esta, publicada hoje no Diário Digital, que nos deixa a todos sem palavras!
Eu pensava que seria o ministro Mário Lino, sozinho, a dar cabo deste governo com as suas infindáveis argoladas. Mas não. Já tem companhia.
Com amigos destes, caro sr. primeiro ministro, quem precisa de inimigos?

Ajuda de berço


Já aqui postei, e hei-de repetir um dia destes, a campanha de apoio ao Rui Pedro, uma criança portuguesa desaparecida há anos cuja mãe não teve a sorte de conseguir os recursos que tem tido o casal MacCan para tentar encontrar a filha.

Agora é a vez de divulgar a campanha da Ajuda de Berço - Um colo para cada criança - uma instituição também destinada a crianças, que nos pede apenas um clique no seu site. Com esse simples gesto (que não demora mais do que uns segundos) estaremos todos a ajudar a manutenção do site e, consequentemente, a angariação de receitas para a obra. A Ajuda de Berço acolhe crianças desprotegidas, dos 0 aos 3 anos. O site vive exclusivamente da publicidade que faz e são as empresas que o patrocinam que ajudam esta instituição. Só temos que mostrar que o visitámos, clicando no botão "UM COLO PARA CADA CRIANÇA": http://www.arcidadania.org/.
Não custa nada, pois não?

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Ângulo certo









O ângulo certo é tudo. Uma homenagem aos fotógrafos e à sua arte tão especial.


Ericeira


A tua Ericeira teve o condão de lembrar-me a minha (não muito diferente): a casa encostada ao Parque de Sta Marta, onde assisti embasbacada ao primeiro passo do Homem na Lua; o Café do Xico, onde se cozinhavam os namoros de cada Verão; o ringue de patinagem no Parque de Sta Marta, onde se exibiam equilíbrios e piruetas para impressionar os possíveis candidatos, ao som do Calhambeque de Roberto Carlos; o Cinema do meu primeiro filme, "Sete noivas para sete irmãos" (!); os bolinhos de coco da Pinta, comidos quentes e em quantidades tais que enjoei o coco até hoje; o Ouriço, onde dei o meu primeiro beijo; a travessia a nado da praia grande para a praia do sul, que o meu pai fazia e nos arrepiava (os banheiros deixavam-no fazer a proeza, só a ele, porque o sabiam um nadador prodigioso); o Jogo da Bola depois da praia, onde combinávamos programas tão inocentes como nós; os passeios com os amigos até às Furnas, antes de jantar, com um frio de quase inverno e um cheirinho a maresia incomparável... e tantas, tantas outras coisas mais, lembranças de tempos felizes.

Obrigada por me teres trazido à memória essa Ericeira perdida, onde só voltei há 2 ou 3 anos por insondáveis razões. Apesar de tudo, a essência da "nossa" Ericeira ainda lá está. Betão à parte, ainda encontrei a sua magia quase intacta.
Nota 1: Resposta à pergunta de Leonor Barros (Geração Rasca, 21 de Junho) - E a tua Ericeira, como é?
Nota 2: A "minha praia" de sempre não foi a Ericeira, mas o Baleal. Hei-de falar nele aqui também. Acontece que, por circunstâncias que agora não interessa referir, passei na Ericeira alguns verões fulcrais da minha adolescência, como se pode perceber pelas recordações que tenho dessa praia maravilhosa. E no meu coração cabem vários lugares.

domingo, 24 de junho de 2007

Apoio telefónico


Gravação no atendedor de chamadas do Hospital Júlio de Matos:

"Obrigado por ter ligado para o Hospital Júlio de Matos - Instituto de Saúde Mental, a companhia mais adequada aos seus momentos de loucura."

* Se você é obsessivo-compulsivo, marque repetidamente o 1.

* Se você é co-dependente, peça a alguém que marque o 2 por si.

* Se você tem múltipla personalidade, marque o 3, 4, 5 e 6.

* Se você é paranóico, nós sabemos quem é você, o que você faz e o que
quer. Aguarde em linha enquanto localizamos a sua chamada.

* Se você sofre de alucinações, marque o 7 nesse telefone colorido gigante
que você, e só você, vê à sua direita.

* Se você é esquizofrênico, oiça com atenção, e uma voz interior lhe
indicará o número a marcar.

* Se você é depressivo, não interessa que número marque. Nada o vai tirar
dessa sua lamentável situação.

sábado, 23 de junho de 2007

Pequenos Crimes Conjugais


Fui ver ontem, no Teatro Aberto, a penúltima representação de "Pequenos Crimes Conjugais" de Eric-Emmanuel Schmitt, numa bela encenação de José Fonseca e Costa. A tradução da peça para português foi de Luiz Francisco Rebello.
Rita Salema e Paulo Pires (nesta versão, que o papel feminino já esteve também a cargo de Margarida Marinho) defendem bem os seus papeis: os de um casal desgastado por 15 anos de convivência, num confronto final desesperado, violento e terno. Uma história intemporal em que muitos outros casais devem ter-se revisto.
Verdadeiramente magnífico é o texto, de uma subtileza e acutilância impressionantes. A vida conjugal, com o seu infindável jogo de acusações, ironias e gritos de socorro, é analisada e dissecada até à exaustão, demonstrando o profundo conhecimento que o autor tem da natureza humana (nomeadamente da feminina). Não posso acrescentar "a não perder", porque a peça sai hoje de cena. Mas talvez volte um dia.

Marly de Oliveira


De novo a poesia brasileira no feminino, desta vez para uma triste notícia: a da morte de Marly de Oliveira, poeta talentosa e injustamente pouco divulgada, mesmo no seu país (pelo menos junto do grande público). Em Portugal, nem se fala.
Talvez tenha ficado mais conhecida por ter sido casada com João Cabral de Melo Neto, poeta maior do Brasil. Mas ela foi muito mais do que isso: tinha voz própria, publicou vários livros de poesia e recebeu mesmo o conceituado prémio Jabuti, com "O mar de permeio" (1998).
Morreu a 1 de Junho, aos 72 anos.
Aqui deixo uma matéria da crítica literária Maria Elisa Guimarães sobre a poeta, no seu blog Sub Rosa.
Para que conste.

Viva o São João!


Hoje é véspera de S. João. No Porto o delírio é total, chega quase ao assassinato nas ruas (o alho-porro não mata, mas garanto que mói bastante...). Bonito é ver os balões iluminados que enchem o céu da cidade, à noite, como pequenas estrelas coloridas.
Estou bem longe desse regabofe, aqui nesta paz marítima. Aqui, é o mar que está juncado de velas de todas as cores. São os veleiros que alegremente treinam para o 2007 ISAF Sailing World Championship - Classes Olímpicas, que está quase a começar. Vale a pena dar um salto a Cascais para ver o espectáculo. Foi pena não termos ganho a Taça América (por todas as razões), que Valência nos arrebatou à última hora e contra todas as expectativas. Mas, não tendo ganho a lotaria, temos pelo menos esta bela terminação. E já estamos tão habituados ao second best, não é?
Mas enfim, cá pelo sul também se festeja o S. João, embora com menos alarido. Por isso aqui deixo alguns manjericos e a máxima popular: “No São João, pinga a sardinha no pão”. Por mim, já fiz a minha parte: comprei um manjerico e acabei de almoçar uma bela sardinhada. Viva o S. João.

Jaula para ingleses


Não, não é uma jaula para ingleses pedófilos e o assunto nada tem a ver com a pequena Maddy.
É que acabei de saber que o livro JAULA, de Astrid Cabral, está a ser passado para inglês pelo qualificadíssimo Alexis Levitin (que já traduziu para a língua inglesa alguns dos melhores poetas portugueses, como por exemplo Sophia de Mello Breyner e toda a obra de Eugénio de Andrade).
Boa escolha, e merecidíssima. Toda a força da natureza que é o Brasil explode neste delicioso bestiário poético, que figura há muito nos "Louros do Vento" (em baixo e à esquerda, neste blog).
Os meus parabéns à querida Astrid, pelo talento, e a Levitin, pelo faro.
O livro vende-se por cá? Humm, acho que não. Mas devia.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Calhaus Rolantes strike again

Noutro género, a devida homenagem aos eternos Rolling Stones.
O fôlego destes rapazinhos ainda é impressionante (mesmo que haja uma ajudinha em pó, que ninguém é de ferro...). Merecem pelo menos um aplauso. Aí estão eles de volta, ao ataque, nos palcos portugueses e não só.
Lembram-se de como eram no princípio, quando incendiavam até virgens e meninas prendadas? Não?? Então aqui fica esta pérola:


Brasil 5 estrelas

Aviso: Este post é repetido (5/5/2007). Volto a publicá-lo porque se aproxima a data deste concerto fantástico, como sempre pouco divulgado por aí. Não sei se ainda haverá bilhetes, mas vale a pena tentar. Se puderem, não percam.
Para além dos "monstros sagrados" da geração de ouro da MPB, entre criadores e intérpretes - Jobim, Vinicius, Caetano, Buarque, Bethânia, Gal, Simone, Gil (para citar apenas alguns) - e dos actuais e estrondosos sucessos de bilheteiras em festivais de música e de vendas de cd's, sobejamente conhecidos e aclamados por todo o lado, existe uma outra música no Brasil que Portugal conhece ainda muito pouco.
É uma linha urbana, culta e sofisticada, que absorveu o que de melhor fizeram os seus antecessores e inovou com mestria e bom gosto, em composições que honram, sem uma beliscadura, a brilhante tradição musical a que o Brasil sempre nos habituou. Casando novas tecnologias e tendências melódicas com os mais profundos e sólidos alicerces da chamada "tropicália", continua a provar que o código genético do povo brasileiro se escreve em pautas. Soubessemos nós, portugueses, integrar assim, harmoniosamente e sem complexos, as nossas raízes...
Curiosamente (ou talvez não) uma boa parte desta nova onda de músicos chega-nos da cidade de São Paulo, contrariando a regra antiga dos talentos baianos. É urgente que estes nomes e as suas obras passem a ser familiares aos ouvidos portugueses, porque nem só de êxitos comerciais vive a actual música brasileira. E este "Brasil 5 estrelas" merece o nosso aplauso.
Aqui deixo o meu modesto contributo para a sua divulgação: José Miguel Wisnik, um desses nomes praticamente desconhecidos entre nós e cantor/compositor/pianista de qualidade ímpar, dará um concerto na Culturgest no dia 29 de Junho e far-se-á acompanhar de vários outros talentos. Não percam a oportunidade, garanto que valerá a pena.
Transcrevo o texto de apresentação do espectáculo:

"Poucas figuras realizam como José Miguel Wisnik uma certa mistura caracteristicamente brasileira de “alta” e “baixa” cultura, no campo da canção popular. Reconhecido internacionalmente como ensaísta na área da literatura, o professor da Universidade de São Paulo é também autor de canções interpretadas por artistas como Maria Bethânia, Gal Costa, Zélia Duncan ou Djavan, foi parceiro de Caetano Veloso na banda sonora do espectáculo de dança Onqotô, do Grupo Corpo, e de Chico Buarque na canção Embebedado, e escreve música para teatro e cinema. Neste concerto, o pianista e cantor vem acompanhado de duas vozes de destaque na cena brasileira actual: Ná Ozzetti, de São Paulo, e Jussara Silveira, da Baía. Os três são acompanhados pelo guitarrista e compositor Arthur Nestrovski, também professor universitário e escritor, como Wisnik, pelo baixista Swami Jr., director musical da grande cantora cubana Omara Portuondo, e pelo percussionista Sérgio Reze, que toca regularmente com muitos artistas de ponta como Mónica Salmaso e Paulinho da Viola. O repertório que vêm apresentar inclui apenas canções de Wisnik, retiradas dos seus três discos a solo e do novo disco que será gravado este ano. Entre outras: Inverno e Primavera, compostas para o Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa, Nossa Canção, parceria com Guinga, a inédita Tenho Dó das Estrelas, sobre poema de Carlos Drummond de Andrade e Mortal Loucura, sobre poema de Gregório de Matos. Cada uma traz as marcas daquela combinação singular de poesia e música – harmonias incomuns, ritmos inesperados, desenhando melodias de palavras – que define a nova canção do Brasil."

Voz, Piano e Composição José Miguel Wisnik; Voz Ná Ozzetti; Voz Jussara Silveira; Violão Arthur Nestrovski; Violão de 7 cordas e Baixo Swami Júnior; Percussão Sérgio Reze
Aqui fica um aperitivo, a canção "Sem receita", em que Wisnik musica um poema da excelente poeta e letrista Alice Ruiz, minha amiga do peito. A propósito, incluí este poema de Alice no meu último livro, "A Poesia é para Comer" (uma antologia de poemas lusófonos com o tema da gastronomia, de que junto a capa neste post).
Eis o delicioso poema:
SEM RECEITA

Primeiro, lenta e precisamente,
arranca-se a pele
esse limite com a matéria.
Mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar.
As coxas, soltas e firmes,
devem ser abertas
e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem deve lembrar
a proximidade do coração.
Esse não.
Quem pode saber
como se tempera um coração?

Limpa-se as vísceras,
reserva-se os miúdos
para acompanhar.
Escolhe-se as ervas,
espalha-se o sal,
acende-se o fogo,
marca-se o tempo
e, por fim, de recheio,
a inocente maçã,
que tão doce, úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim:
sem receita

(Alice Ruiz)

Cliquem aqui para ouvir a música, e deliciem-se!

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Maríntimo II


Nunca, até então, tinha sentido uma tão intensa sintonia com objecto inspirador de quase toda a sua obra. Desejara desde sempre ter com ele uma relação de cumplicidade, de segredos partilhados, de intimidade absoluta. Mas sempre se interpusera entre eles a insondável distância que separa a estrela do mísero planeta que dela se alimenta. Eles eram o mestre e o fascinado aprendiz, a serpente e o pássaro subjugado.

Escrevia febrilmente no ar, molhando os dedos no grande tinteiro azul, pernas cruzadas sobre conchas e areia. Finalmente, o sonho que se cumpria.

A hora era branca, a luz total.

Nunca soube quanto tempo durara a magia. A avaliar pela luz tinham sido várias horas, pois lembrava-se de ter chegado ali quando o sol ainda se anunciava no horizonte. Levantou-se, por fim, sentindo um formigueiro no corpo, devido mais à excitação do que à anterior imobilidade.

Quis levar debaixo do braço o registo daquela comunhão perfeita e percebeu, assombrado, que nada tinha entre as mãos.

Olhou o mar, sentido, e cada onda era uma gargalhada.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Uma cena que vale um filme

A melhor arte por uma lata de feijões, ou a prova de que tudo é relativo.
No filme "O pianista", de Polansky - uma cena que vale o filme inteiro.


terça-feira, 19 de junho de 2007

Vincent Meireles


ENCOMENDA


Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê - como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.


Cecília Meireles

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Uma pátria chamada língua portuguesa





Fascinante e oportuno texto de Mia Couto, escrito (já) há 10 anos:







Perguntas à Língua Portuguesa

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.
Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:


- Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
- No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
- A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
- O mato desconhecido é que é o anonimato?
- O pequeno viaduto é um abreviaduto?
- Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
- Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
- Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
- Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
- O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
- Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
- Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
- Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
- Mulher desdentada pode usar fio dental?
- A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
- As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
- Um tufão pequeno: um tufinho?
- O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
- Em águas doces alguém se pode salpicar?
- Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
- Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
- Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
- Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.


(Mia Couto - 11/04/1997)

"Todo o mundo é composto de mudança"


De alguns amigos brasileiros, escritores e gente ligada às letras, tem-me chegado insistentemente, via e-mail, o texto que aqui transcrevo. Prevejo alguma polémica por cá, da parte dos mais desprevenidos e dos eternos renitentes às mudanças. Para esses, aqui fica uma sugestão do insuspeito David Mourão-Ferreira (suponho que ninguém questionará o seu amor pela língua portuguesa):

"É bom lançar ao fogo um velho dicionário
É bom o crepitar das palavras antigas
Adivinhar quais são as que por fim renascem
E que sabem voar ao sairem das cinzas" (...)

Tal como ele, defendo que uma língua é uma coisa viva. Por isso se transforma e adapta aos tempos, desde sempre. E é assim que deve ser, ou ainda estaríamos a falar o português de Gil Vicente!


« Alfabeto passará a ter 26 letras
Está para entrar em vigor a unificação da Língua Portuguesa que prevê, entre outras coisas, um alfabeto de 26 letras. "A frequência com que eles leem no voo é heroica!". Ao que tudo indica, a frase inicial desse texto possui pelo menos quatro erros de ortografia. Mas até o final do ano, quando deve entrar em vigor o "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa", ela estará corretíssima. Os países-irmãos Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste terão, enfim, uma única forma de escrever. As mudanças só vão acontecer porque três dos oito membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) ratificaram as regras gramaticais do documento proposto em 1990. Brasil e Cabo Verde já haviam assinado o acordo e esperavam a terceira adesão, que veio no final do ano passado, em novembro, por São Tomé e Príncipe. Tão logo as regras sejam incorporadas ao idioma, inicia-se o período de transição no qual ministérios da educação, associações e academias de letras, editores e produtores de materiais didáticos recebam as novas regras ortográficas e possam, gradativamente, reimprimir livros, dicionários, etc.
O português é a terceira língua ocidental mais falada, após o inglês e o espanhol. A ocorrência de ter duas ortografias atrapalha a divulgação do idioma e a sua prática em eventos internacionais. Sua unificação, no entanto, facilitará a definição de critérios para exames e certificados para estrangeiros. Com as modificações propostas no acordo, calcula-se que 1,6% do vocabulário de Portugal seja modificado. No Brasil, a mudança será bem menor: 0,45% das palavras terão a escrita alterada. Mas apesar das mudanças ortográficas, serão conservadas as pronúncias típicas de cada país.
O que muda: As novas normas ortográficas farão com que os portugueses, por exemplo, deixem de escrever "húmido" para escrever "úmido". Também desaparecem da língua escrita, em Portugal, o "c" e o "p" nas palavras onde ele não é pronunciado, como nas palavras "acção", "acto", "adopção", "baptismo", "óptimo" e "Egipto". Mas também os brasileiros terão que se acostumar com algumas mudanças que, a priori, parecem estranhas. As paroxítonas terminadas em "o" duplo, por exemplo, não terão mais acento circunflexo. Ao invés de "abençôo", "enjôo" ou "vôo", os brasileiro terão que escrever "abençoo", "enjoo" e "voo". Também não se usará mais o acento circunflexo nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos "crer", "dar", "ler", "ver" e seus decorrentes, ficando correta a grafia "creem", "deem", "leem" e "veem". O trema desaparece completamente. Estará correto escrever "linguiça", "sequência", "frequência" e "quinquênio" ao invés de lingüiça, seqüência, freqüência e qüinqüênio.O alfabeto deixa de ter 23 letras para ter 26, com a incorporação do "k", do "w" e do "y" e o acento deixará de ser usado para diferenciar "pára" (verbo) de "para" (preposição).
Outras duas mudanças: criação de alguns casos de dupla grafia para fazer diferenciação, como o uso do acento agudo na primeira pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação, tais como "louvámos" em oposição a "louvamos" e "amámos" em oposição a "amamos", além da eliminação do acento agudo nos ditongos abertos "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "assembléia", "idéia", "heróica" e "jibóia".
Antônio Houaiss
Nota: A escrita padronizada para todos os usuários do português foi um estandarte de Antônio Houaiss, um dos grandes homens de letras do Brasil contemporâneo, falecido em março de 1999. O filólogo considerava importante que todos os países lusófonos tivessem uma mesma ortografia. No seu livro "Sugestões para uma política da língua", Antônio Houaiss defendia a essência de embasamentos comuns na variedade do português falado no Brasil e em Portugal. »

Não sei qual o prazo previsto para que este acordo entre em vigor, mas parece que está para breve. Se assim for, é bom que nos vamos habituando à ideia (e não - idéia)...

As gaffes de Bush


Ainda estou de boca aberta com aquela notícia sobre o presumível roubo do relógio do sr. Arbusto (não merece, sequer, ser árvore), durante o banho de multidão na sua visita à Albânia.
Todos os media a comentaram largamente por esse mundo fora, e o inestimável YouTube encheu-se de preciosos videos exemplificativos. Não vou ilustrar com nenhum deles este post. Já chega. Além disso, é-me indiferente que o relógio tenha sido roubado ou não.
Venho apenas lembrar um simples pormenor, porque muito me espanta que ninguém tenha reparado nele (pelo menos, que eu tenha tido conhecimento): A Casa Branca, onde vive o sr. Arbusto, no seu infatigável papel de tapa-buracos nas inúmeras tropelias do dito, apressou-se a dizer que o relógio afinal não tinha sido roubado, que o povo albanês podia manter intacta a sua imagem pública porque o presidente, cautelosamente (!!!!), tinha tirado ele próprio o valioso relógio do pulso e o tinha guardado no bolso, antes de mergulhar na multidão que o queria abraçar.
Magnânima colher de chá oferecida à Albânia? Não, não, muito pelo contrário.
Na infinita e proverbial arrogância do costume, a Casa Branca do sr. Arbusto não parece ter-se apercebido de que esta justificação era ainda muito mais ofensiva para o povo albanês do que a simples admissão da existência de um carteirista no meio de uma multidão (coisa absolutamente natural, em qualquer parte do mundo). A Casa Branca esqueceu-se, lá no pedestal do seu autismo, de que o sr. Arbusto estava, com esse gesto preventivo, a presumir que a Albânia era, toda ela, um país de ladrões!!!!!!
Como gaffe diplomática, não está mal. Mas também é verdade que ele já fez outras, bem piores...

Nota: Esta história lembrou-me um filme já antigo, uma óptima comédia de auto-crítica aos bastidores da política americana - Manobras na Casa Branca. A trama conta a criação, orquestrada pelos media, de uma guerra fictícia como manobra de diversão para encobrir um incidente pouco abonatório e muito inconveniente para o presidente eleito, em vésperas de novas eleições. O cenário escolhido para a guerra inventada é precisamente a Albânia, aquele insignificante país que talvez só agora os americanos (e não todos, certamente) tenham passado a saber apontar no mapa.
Razão tem Rita Lee: Tudo vira bosta (com Bush, acrescento eu)


domingo, 17 de junho de 2007

À mesa de um blog


Bem observado, este post de Eduardo Pitta: Da Literatura: DOMINGO . Os blogs, hoje em dia, cumprem a mesma função dos cafés de antigamente. E, tal como antes, cada um só convida para a sua mesa quem quiser que lá esteja.
Porque há mesas para todos os gostos: desde as elitistas dos cafés chiques, onde o grupo está formado, de pedra e cal, e ninguém mais pode perorar (são os blogs que não admitem comentários) até às mais saloias dos cafés de bairro, em que cabe sempre mais uma cadeira, por isso qualquer desbocado pode entrar na tertúlia e dizer alarvidades de sua justiça. Entre estes dois extremos, há variações possíveis e interessantes. Por exemplo, a de pôr na rua, sem contemplações, os convivas que não saibam comportar-se à mesa, sorvam o café com ruído, palitem os dentes ou agarrem na xícara de dedinho empinado, enquanto dizem baboseiras. O Porta do Vento tende para esta opção, mas, como ainda anda nesta vida de cafés há pouco tempo, por enquanto bebe uma bica aqui, um galão acolá. E assim, de mesa em mesa, há-de encontrar os seus pares e fazer um dia a sua.
Até lá, todos poderão vir dar uma espreitadela e dizer como gostam da torrada. E, porque hoje é domingo, a bica é por conta da casa.

Game over


Falo ainda (e espero que pela última vez) do pé-de-vento que se gerou em torno do "alegado" (?) plágio dos Gatos.

Já que me meti nesta história (e nela fui citada), não quero deixar de apresentar aqui o trabalho exaustivo e de tratamento jornalístico exemplar feito por Pedro Fonseca, no seu Contra Factos & Argumentos:


Isto, sim, é não ser preguiçoso. Por mim, fiquei finalmente esclarecida.

Game over


Nota 1: Já confessei que sou assídua seguidora do humor dos Gato Fedorento, mas não gosto de intocáveis. É uma questão de princípio. Além disso, quem usa como matéria prima os ridículos e os podres dos outros, tem que admitir ser criticado também e não pode reagir mal. É do mais elementar bom senso.

Nota 2: Deplorável foi a falta de gosto e de sentido de humor de Luis Pereira de Sousa, um dos convidados do último episódio. Quis mostrar fair-play e fazer uma gracinha, e ofereceu aos Gatos uma ratazana nojenta, engaiolada. Por amor de Deus, homem!!! Foi de um mau gosto atroz, além de revelar uma total incapacidade para a subtileza.

sábado, 16 de junho de 2007

Museu sub-aquático


Neste fim de semana cinzento e chuvoso (em que a praia está fora de questão), sugiro que se rendam, sem resistência, ao elemento Água.
Experimentem um mergulho - literalmente - neste estranho e misterioso mundo.
Deixem-se encantar...

Bom fim de semana!

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Admito que estou um bocadinho viciada em widgets, ou, como diz a FL com graça, em "amaricar o blog".
Mas desta vez não foi por vício que adicionei as traduções a este espaço. É que descobri, pasmem!! - eu ainda estou de queixo caído - que até no Japão há quem venha espreitar a Porta do Vento! (presumo que sejam portugueses migrantes, mas, just in case...).
Assim, amigos de todo o mundo, espero que isto vos facilite a vida. As traduções são miseráveis, aviso já, mas é o que se pode arranjar. As mais fiáveis são sempre do inglês para outros idiomas, mas eu ainda escrevo em português.
Et voilá!

O efeito Putin

Depois de um loooongo almoço com Putin, Mr. le président Sarkozy ficou assim, um pouco lento. Um G8 bem regado a vodka?

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Feira do Livro 2007


Ainda não comentei a Feira do Livro de Lisboa deste ano. Deixei passar a data, por qualquer motivo.
Fui lá mesmo no fim, em dois dias seguidos, com o parque Eduardo VII a abarrotar de gente. Não sei como foram os dias restantes, mas nestes em que por lá passei dava gosto ver o interesse das pessoas por livros.
Comprei alguns (nunca resisto!), bem mais do que os que tencionava comprar e a carteira me aconselhava. Mas a verdade é que encontrei excelentes livros a preços incríveis, um pouco por todo o lado. As editoras estão de parabéns, mataram três coelhos de uma só cajadada: livraram-se de stocks excedentários, a criar bolor e pó em armazéns apinhados, facturaram alguma coisa com esses livros já condenados ao extermínio, e ainda fizeram um brilharete, perante muita gente que está de tanga mas gosta de cultivar-se. Consegui a proeza de comprar obras de Philip Roth, Vergílio Ferreira, Marguerite Duras, Agostinho da Silva e Paul Auster, e não pagar por nenhuma delas mais do que 4,5 €! Algumas custaram mesmo 1 ou 2 €.

Curiosamente, o livro mais caro que trouxe de lá foi o do famosíssimo cozinheiro inglês Jamie Oliver (Na cozinha com J.O.), mas era daqueles que eu queria mesmo ter e ali, pelo mesnos, comprei-o com 20% de desconto. Tive ainda a sorte de receber de presente um outro livro que estava para comprar há que tempos: "Como tornar-se um doente mental" (vencedor do Prémio Città delle Rose, em 2006), do médico português J.L. Pio Abreu. Esse também não estava em saldo.
Num dos dias em que fui, estava a autografar António Lobo Antunes, na Dom Quixote. Através das suas crónicas pungentes na revista Visão, e das notícias na generalidade dos media, todos temos acompanhado a difícil fase em que o escritor se encontra actualmente. Espantou-me que ali estivesse, ainda mais porque soube que tinha estado também na Feira do Porto, na véspera, (onde, aliás, não estava presente há 10 anos). Mas ali estava ele, magro, visivelmente abatido, mas com uma nova simpatia e humanidade no olhar, perguntando com dificuldade: "Que nome ponho na dedicatória?". A curiosidade e a reverência tinham juntado nesse dia uma extensíssima fila de leitores, ansiosos por um autógrafo. Tão longa que garantiria a Lobo Antunes 2 ou 3 horas, pelo menos, de assinaturas. E era evidente que não seria possível aguentar tal embate, para um convalescente ainda tão fragilizado. Mesmo assim, foi com um gesto de genuina pena por frustrar as expectativas de tanta gente, que o ouvi dizer: "Agora não aguento mais. Vou descansar um bocadinho e depois volto." É claro que não voltou mais, e é claro que as muitas pessoas que ficaram por atender o compreenderam. O cansaço e o enorme esforço estavam bem patentes na sua expressão. Mas foi bonito presenciar a transformação daquele homem, outrora sempre tão arrogante e tão distante do comum dos mortais, a quem o sofrimento deu uma lição de humildade.
Aqui fica a minha homenagem ao grande escritor, que se tornou maior ainda por essa razão.
Nota: A fotografia de Lobo Antunes foi "emprestada" pelo blog A Cidade Surpreendente.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Aviso à navegação


Para quem me lê (família, amigos e alguns incautos que aqui vieram parar por engano) aqui fica este aviso à navegação:
Quem é que disse que este blog era para ser lido sem comentários??? Ora essa, não concordo nada com isso! Por acaso já leram a minha Declaração de Princípios? Então vão lá atrás, vá lá...
Não me considero dona da verdade, não espero aplausos nem gosto de falar de cátedra, sobre nenhum assunto. As opiniões que exprimo neste blog não passam disso mesmo: opiniões minhas. E serão sempre necessariamente pobres se não forem confrontadas com outras, se não houver algum eco.
Escrevo porque essa é a minha forma de expressão, por necessidade íntima. Mas também por necessidade de partilha. E isso, meus caros, é o que me tem faltado aqui: ultimamente sinto-me a falar sozinha. Não pretendo transformar este blog numa intriga de comadres, mas gostaria muito que quem por aqui passa (e eu sei que passam alguns, vejo pela maquineta infernal que instalei lá em baixo...) deixasse comentários, provocações, massagens de ego, acusações, seja o que for.
A propósito disto, lembro-me de um tio que vivia numa quinta isolada lá para os lados da Serra da Estrela, a quem perguntaram uma vez: "Então como vai isso, lá no fim do mundo? Não te faz falta um amigo?". Ele respondeu, com um suspiro fundo: "Um amigo? Inimigo que fosse, caramba!".
Ora eu estou na mesma. A solidão é dura, gente, mesmo a virtual. Por isso acordem, reajam! Prometo responder. Só um pedido: identifiquem-se. E se não quiserem falar em público, mandem-me uma mensagem. Simples, não?

África Poética


Só hoje descobri - e foi por mero acaso, porque ele transcrevia, num post de Natal, o meu poema Dança das 7 Luas - o blog Africanidades, assinado e (bem) defendido por Jorge Rosmaninho.
É todo um mundo que se abre à nossa frente, a nós, avezinhas timoratas fechadas nesta pequena gaiola dourada chamada Portugal. Um mundo enorme, que tem por nome África. Mágico, magnético, fascinante e longínquo.
Neste caso, a porta para esse mundo é a Guiné-Bissau, mas podia ser outra qualquer.
Não deixem de espreitar este blog, e preparem os vossos olhos para horizontes mais vastos. É que, apesar do olhar crítico e realista do autor - tanto por fazer, tanto por denunciar! - a poesia de África impõe-se-lhe, irremediavelmente. Há rios que levam desertos para a sua nascente...

http://www.richardlawhorn.com/music/Out_of_Africa_Theme.mp3

(Cliquem só na janela que vai abrir, ao passar o cursor sobre est endereço. Assim podem continuar nesta página)

terça-feira, 12 de junho de 2007

Good old "boys"

Volto à política. (ver post anterior: E agora, José? - de 1 Jun. 2007)
E volto porque é irresistível, quando assim feita poesia: irónica, cáustica, corrosiva até ao osso dos partidos. Salvaguardando as perigosíssimas generalizações, este é um retrato bem realista dos nossos lucky few.
Uma ferroada que nos dá um certo gozo, uma vingança possível. Inconsequente, claro, mas ainda assim balsâmica...



FEIOS, PORCOS E MAUS *

Compram aos catorze a primeira gravata
com as cores do partido que melhor os ilude.
Aos quinze fazem por dar nas vistas no congresso
da jota, seguem a caravana das bases, aclamam
ou apupam pelo cenho das chefias, experimentam
o bailinho das federações de estudantes.
Sempre voluntariosos, a postos sempre,
para as tarefas da limpeza após o combate.
São os chamados anos de formação. Aí aprendem
a compor o gesto, interpretar humores,
a mentir honestamente, aí aprendem a leveza
das palavras, a escolher o vinho, a espumar
de sorriso nos dentes, o sim e o não
mais oportunos. Aos vinte já conhecem pelo faro
o carisma de uns, a menos valia
de outros, enquanto prosseguem vagos estudos
de Direito ou de Economia. Começam, depois
disso, a fazer valer o cartão de sócio: estão à vista
os primeiros cargos, há trabalho de sapa pela frente,
é preciso minar, desminar, intrigar, reunir.

Só os piores conseguem ultrapassar esta fase.
Há então quem vá pelos municípios, quem prefira
os organismos públicos - tudo depende do golpe
de vista ou dos patrocínios que se tem ou não.
Aos trinta e dois é bem o momento de começar
a integrar as listas, de preferência em lugar
elegível, pondo sempre a baixeza acima de tudo.

A partir do Parlamento, tudo pode acontecer:
director de empresa municipal, coordenador de,
assessor de ministro, ministro, comissário

ou director executivo, embaixador na Provença,
presidente da Caixa, da PT, da PQP e, mais à frente
(jubileu e corolário de solvente carreira),
o golden-share de uma cadeira ao pôr-do-sol.
No final, para os mais obstinados, pode haver
nome de rua (com ou sem estátua) e flores
de panegírico, bombardas, fanfarras de formol.

JOSÉ MIGUEL SILVA, in Movimentos no Escuro (Relógio d'Água, 2005)

*Nota: Embora não figure n'Os Louros do Vento, o filme de Ettore Scola é um dos meus preferidos de sempre. Se alguém, por absurdo, ainda não o viu, por favor vá a correr ao clube de video. O que nos comove, nos diverte e nos ensina, esta hora e meia de puro deleite!!

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Aula de desenho

AULA DE DESENHO

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face
a régua e compasso: É falsa.
Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato.
Evoco o abstrato.
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: Na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz,
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

Maria Esther Maciel
Nota: Desenho de M.C.Escher - Drawing hands (1948)

domingo, 10 de junho de 2007

Portugal no seu melhor

Hoje é domingo. E o domingo já é um dia suficientemente estúpido e neurasténico para lhe juntarmos, ainda por cima, assuntos pesados. Por isso aqui ficam algumas imagens para sorrir.
Um sorriso um tanto ou quanto constrangido, é verdade (o nosso analfabetismo não é propriamente uma brincadeira...), mas ainda assim um sorriso.
Chamemos-lhe um sorriso "de ternura" por todos nós, portugueses.









E por fim, para nos redimir e para não acharmos que somos os únicos iletrados da Europa, juntei também uma bela imagem de nuestros hermanos.
Digam comigo: Ah, bem, assim já está melhor!...

Apenas uma nota: "Picha" é o nome de uma terra portuguesa, acreditem ou não.

sábado, 9 de junho de 2007

Beauty is nothing without brains

Um tributo à boa publicidade. Finalmente, um anúncio de automóveis que faz justiça às mulheres normais...

Rui Pedro, o parente pobre

Não posso deixar de colaborar nesta campanha. O caso da menina inglesa, com a gigantesca mediatização que envolveu e com os apoios que mobilizou um pouco por todo o mundo, obriga-me a esse acto de mera justiça e solidariedade.

Tenho assistido, como todos os portugueses que vêm televisão, à incessante batalha desta mãe, impotente mas nunca vencida. Sem recursos, sem divulgação mediática internacional (mesmo a nacional tem sido quase inexistente), sem audiências com o Papa e sem apoios de nenhuma espécie, a mãe do Rui Pedro não permite - sempre que lho permitem a ela - que nos esqueçamos do seu filho desaparecido.

Uma mulher bonita que envelheceu à nossa vista, corajosamente exposta e inconformada. Sei que este não é o único caso de crianças portuguesas desaparecidas, longe disso. Mas a imagem desta mãe, devastada pelo desgosto e pela expectativa interminável, atira-me à cara a sorte que tive em ter acompanhado o crescimento dos meus filhos e tê-los tido sempre por perto. A mãe do Rui Pedro apenas pode imaginar, auxiliada por um retrato robot feito por um computador, como será (ou seria?) o seu filho agora. E esse simples pensamento já é insuportável.

Aqui fica, por isso, o meu humilde contributo.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Um Olé! nos genes


Eu já suspeitava.
Não queria dar muita confiança a esse pensamento recorrente, mas a verdade é que já suspeitava: há um Olé! no meio dos meus genes, colado aos outros que nem uma lapa, e não posso fazer nada para pô-lo a andar.
Comprovei-o sem enganos possíveis, no domingo passado, e ainda estou em choque. Foram precisos vários dias (hoje já é 5a feira) para digerir a descoberta e ser capaz de verbalizar esta confissão. Como aconteceu? Eu conto. No domingo passado fui "aos toiros". E gostei. Muito. E também fiquei a conhecer-me melhor.

Pronto, está dito e assumido. Vá lá, blogueiros civilizados e sofisticados, politicamente correctos, defensores dos animais, intelectuais, zen, vegetarianos e macrobióticos, gays e outros mais que agora não me lembro, aproveitem bem esta borla que vos dou: crucifiquem-me, que eu já confessei tudo. Se quiserem açoitar-me e lançar-me à fogueira, estejam à vontade. Mas não sem primeiro me darem o direito a meia dúzia de últimas palavras.
Há muitos anos que não punha os pés numa corrida de toiros e fui acumulando, com o tempo, um misto de saudade, desinteresse e expectativa, sem saber que sensações me esperariam de novo, se um dia voltasse a assistir a uma. Será que ainda vibraria com aquilo? Ou será que a minha condição de cabeça pensante, razoavelmente esclarecida e já urbana, me teria afastado irremediavelmente da barbárie? Foi nesse estado de espírito, inquieto e curioso, que resolvi aceitar o simpático convite de uns amigos. O desafio era total, porque nos acompanhavam duas ferozes opositoras daquele espectáculo: uma já veterana, com experiência no assunto e opinião bem calcificada, e a outra em absoluta estreia, mas firmemente decidida a odiar tudo aquilo.
Mas, dizia eu, o que mais me atraiu lá foi saber o que se passaria comigo. Pois bem, agora já sei. Mal pus um pé na praça - não na arena, que ainda não enlouqueci de todo - deu-se uma estranha transfiguração em mim: o coração começou a bater mais depressa, um rubor de antecipado prazer devolveu-me as cores saudáveis da infância e uma espécie de beatífica reverência deixou-me em estado de graça, tomando-me de assalto todas as emoções. Ali estava eu, cinco sentidos alerta e prontos a vibrar ao mínimo estímulo. Neurónios? Nem um só de sentinela. Todos de férias, a banhos. Código moral? O que é isso, nome de sobremesa? Logo ao primeiro impacto me deixei embriagar pelas cores, pelos cheiros, pelo sons. Foi como se uma maléfica Mrs. Hyde, acordada de repente, tivesse dobrado em quatro e guardado no bolso, com um sorriso de triunfo, a respeitável Dra. Jekyll que costuma estar de serviço em mim. Ali, Mrs. Hyde estava em casa. E eu em transe.
Para dizer a verdade, a corrida nem sequer foi nada de especial. Foi "à portuguesa", ou seja, sem toureio a pé. Houve tareia séria nos forcados, os toiros foram vaiados porque eram mansos e completamente indiferentes aos pobres cavaleiros, que faziam tudo o que podiam para não sairem dali vergonhosamente derrotados. Reparei que nada mudou muito desde a longínqua última vez que tinha assistido a uma corrida de toiros. Talvez só o público tenha refinado um pouco: que não se pense que é só constituido por marialvas acéfalos. Nada disso. Lá estavam, felizes e entusiasmados como qualquer outro aficionado, respeitáveis políticos de esquerda e de direita, alguns intelectuais bem conhecidos da nossa praça, artistas e até homens da ciência, para além, claro, dos omnipresentes colunáveis da praxe.
Nada disso me interessou muito: eu estava concentrada no meu próprio sótão interior, descobrindo velhas chaves de gavetas secretas que julgava perdidas para sempre. Mas não, ali estavam elas. Enferrujadas, poeirentas, mas ainda a funcionar. Experimentava-me, punha-me à prova no meu mais íntimo laboratório, testando fórmulas antigas em pipetas fumegantes e aguardando ansiosamente os resultados. Nesse estado letárgico de semi-lucidez dei comigo a corrigir, com uma certa arrogância snobe, os comentários leigos dos urbanos que me acompanhavam: não se diz "tourada", diz-se "corrida de toiros". E aquilo não é uma capa, é um capote. Aqueles que entraram agora não são toiros, são cabrestos. Não, nenhum toiro vai para dentro sem ser pegado pelos forcados. Se a pega não puder ser de caras, será de cernelha. Se ganham muito? Não, nem um tostão. São amadores, arriscam a vida por um jantar e uma boa dose de adrenalina. O forcado não está a fazer ski, está a rabejar! Raspar no chão e berrar não são sinais de bravura num toiro, mas sim de mansidão. E entredentes, resmungava: Ignorantes!...
Não vou defender - não caio nessa! - o espectáculo a que assisti com um prazer confesso. Não é possível justificá-lo racionalmente, porque é indefensável. É uma coisa de paixão, de emoção pura. Que apela ao que há de mais primitivo e pantanoso em nós, as entranhas onde escondemos todos os nossos instintos inconfessados. Os que caem na armadilha de justificar o fenómeno, com teses mais ou menos elaboradas, acabam desarmados e enredados na sua própria teia de argumentos condenados à nascença. Ouço-os dizer que é uma tradição e que as tradições constituem a identidade de um povo, e pergunto-me porque cuidamos tão mal de outros patrimónios bem mais edificantes, como o arquitectónico e o artístico, por exemplo. Ouço-os dizer que os toiros atraem turistas e os turistas aumentam as receitas do país, e pergunto-me se será para afugentá-los depois com o caos urbanístico das nossas costas. Ouço-os dizer, com um certo orgulho, que o toiro bravo seria já uma espécie extinta se não fosse a tauromaquia (porque só serve para esse efeito) e pergunto-me se vale a pena prolongar a vida de uma espécie apenas para esse fim perverso. Ouço-os dizer, genuinamente convictos, que a dignidade do toiro é respeitada ao ser-lhe dada a oportunidade de bater-se numa arena com o toureiro, e pergunto-me quem terá ensinado ao animal o conceito humano de dignidade, com a certeza de que este trocaria, de bom grado, o presente envenenado da dignidade por um punhado de erva fresca e uma manada de vacas para se entreter. Ouço-os dizer, ainda, que os toiros bravos não sentem a dor por causa da descarga de adrenalina, e pergunto-me muito seriamente que raio de desculpa é essa, e como se pode afirmar que um ferro aguçado a entrar num corpo vivo não causa dor. Ouço-os dizer, finalmente, que os espanhóis é que são cruéis porque matam o toiro na arena e nós não, e pergunto-me em que é que isso nos iliba da crueldade e que diferença fará ao bicho o sítio da matança, se é morto na mesma.
Diz-me o cérebro (sempre que está a funcionar), que de nada nos serviu a evolução da espécie humana se ainda nos deleitamos com espectáculos que evocam e recriam os mais bárbaros rituais dos nossos antepassados. Que uma coisa é matar para sobreviver - todos os animais o fazem, afinal - e outra, bem diferente, é torturar e matar por puro gáudio. Nesse capítulo, é sabido, somos mais irracionais do que todos os outros irracionais juntos. E o que nos diz esse facto incontestável? Uma coisa muito simples, que não nos agrada nada constatar: apesar de milénios de formatação civilizacional, existe em nós um primitivismo atávico e inultrapassável, ainda que amordaçado e obrigado a hibernar à força. E que convém não ignorá-lo, porque é perigoso e está apenas latente, não morto. Mal de quem não entende isso, e não está atento aos sinais. Os desprevenidos e os que recusam aceitar a sua condição de perigo potencial, acabam muitas vezes por transformar-se num perigo real, numa bomba relógio que explode sem pré-aviso. São aqueles casos que nos entram todos os dias pela casa dentro, nos jornais televisivos, e nos deixam a colher da sopa suspensa, a meio caminho da boca: estudantes enraivecidos que abatem os colegas estupefactos a rajadas de metralhadora, só porque a namorada os traíu; exemplares mangas-de-alpaca que viram assassinos de colegas de escritório, porque não foram promovidos; mães extremosas que atiram filhos pela janela, fartas da prisão que eles significam; inofensivos velhinhos de asilo que pegam fogo ao estaminé e assistem à cena a rir com gosto, deixando cair as dentaduras; caçadores de domingo que abatem um parceiro ao fim do dia, porque não chegaram a acordo na contagem das rolas.
Karl Marx insurgiu-se contra a religião, por esta ser o ópio do povo. Mas sabia bem que o povo precisa de um qualquer ópio para manter-se estável e razoavelmente dócil, suportando as rotinas e as muitas humilhações que lhe cabem sem mostrar os dentes da besta que tem lá dentro. O futebol cumpre essa mesma função cada vez mais, um pouco por todo o lado. Ali se descarregam muitos ódios e frustrações, que de outro modo poderiam ser fatalmente disparados em imprevisíveis direções. É só ver, nas multidões de adeptos, pacatos chefes de família prontos a matar pelo seu clube em qualquer discussão sem sentido.
Somos todos voyeurs (ninguém está imune), e nada nos satisfaz tanto como a desgraça ou o ridículo dos outros. Por alguma razão nos rimos, instintivamente, quando alguém cai e se magoa. Já pensaram nisso? E nas corridas de automóveis e motas, não estamos sempre à espera de um acidentezinho para "apimentar" a coisa? Que graça teriam os campeonatos de desportos aquáticos sem meia dúzia de quedas aparatosas? Como ignorar, honestamente, essa faceta sádica e perversa que há em todos nós? É assim que somos, queiramos ou não. Exterior sofisticado, interior mais do que duvidoso. E enquanto houver emoções em nós, enquanto houver zonas de penumbra, enquanto não formos todos robots, assim continuará a ser.
Em tudo isto pensei nestes dias, tentando encontrar uma explicação para o insustentável. Porque fui a uma corrida de toiros e fiquei a conhecer-me melhor, rendo-me à evidência: tenho um Olé! nos genes que vai morrer comigo. Preciso é de tomar conta dele, para que não se reproduza.
Nota:




Numa patética e ingénua tentativa de não chocar mais ainda os espíritos impressionáveis, escolhi arte para ilustrar este post (um desenho de Pablo Picasso), em vez das tradicionais fotografias dos cartazes das corridas de toiros. Não foi de propósito, mas parece que foi escolhido a dedo: Picasso era um pintor talentoso e sensível mas também um ser humano execrável, que torturava as mulheres e os amigos e ignorava os filhos. Apreciador de toiros, sim. Era, ele próprio, um bom exemplo dessa dualidade de que somos feitos, afinal.