quinta-feira, 31 de maio de 2007

Reformados


Recebi hoje de manhã, via e-mail, este texto humorístico (??!!) do jornalista Joaquim Fidalgo.

Leiam e meditem. Seria até motivo de orgulho para nós, portugueses, se esta situação fosse extensível a todos os desafortunados que já passaram dos 40 anos e procuram desesperadamente um emprego, de humilhação em humilhação.

Valha-nos o humor negro...


REFORMADOS ACTIVOS - SOMOS OS MELHORES

Ao menos num capítulo ninguém nos bate, seja na Europa, nas Américas ou na Oceânia: nas políticas sociais de integração e valorização dos reformados. Aí estamos na vanguarda, mas muito na vanguarda. De acordo, aliás, com estes novos tempos, em que a esperança de vida é maior e, portanto, não devem ser postas na prateleira pessoas ainda com tanto a dar à sociedade.
Nos últimos tempos, quase não passa dia sem que haja notícias animadoras a este respeito. E nós que não sabíamos! Ora vejamos:
  • O nosso Presidente da República é um reformado;
  • O nosso mais "mortinho por ser" candidato a Presidente da República é um reformado;
  • O nosso ministro das Finanças é um reformado;
  • O nosso anterior ministro das Finanças já era um reformado;
  • O ministro das Obras Públicas é um reformado;
  • Gestores activíssimos como Mira Amaral (lembram-se?) são reformados;
  • O novo presidente da Galp, Murteira Nabo, é um reformado;
  • Entre os autarcas há "centenas, se não milhares" de reformados - garantiu-o o presidente da ANMP;
  • O presidente do Governo Regional da Madeira é um reformado (entre muitas outras coisas que a decência não permite escrever aqui)
E assim por diante... Digam lá qual é o país da Europa que dá tanto e tão bom emprego a reformados? Que valoriza os seus quadros independentemente de já estarem a ganhar uma pensãozita? Que combate a exclusão e valoriza a experiência dos mais (ou menos...) velhos? Ao menos neste domínio, ninguém faz melhor que nós. Ainda hão-de vir todos copiar este nosso tão generoso "Estado social"...
Joaquim Fidalgo (Jornalista)

terça-feira, 29 de maio de 2007

Ah, Tigre!!

Sem comentários

domingo, 27 de maio de 2007

Explicações ligeiramente fedorentas



Como não sou preguiçosa e não gosto de ser acusada de fazer julgamentos precipitados, fiz os trabalhos de casa e fui à procura de explicações sobre o tema do meu último post - o suposto plágio dos Gatos.

Encontrei estas, no "António Maria" (considero-as as mais relevantes de quantas descobri), que aqui reporto por dever de justiça.

Mas não fiquei inteiramente convencida, nem satisfeita. Ricardo Araújo Pereira safou-se bem - todos sabemos como é inteligente - mas, justificando-se com a música tradicional inglesa Three Blind Mice* que deu origem à versão do próprio Claude François (remetendo para este, também, a responsabilidade do plágio, caso o houvesse), esqueceu-se de que não é só de música que se trata. "Pequenos pormenores" como coreogafia, planos de realização do clip, guarda-roupa, etc., são iguais aos de Claude François e não são abrangidos pela explicação aplicada à música. Além disso, o truque da adaptação musical para não pagar direitos de autor é, no mínimo, feio. Como autora, sinto-me no dever de denunciá-lo. Os Gatos também são autores, talvez um dia sintam "no pelo" a mesma sensação de injustiça.

Enfim, achei as explicações ligeiramente fedorentas, if you know what I mean. E mantenho que os Gatos não precisavam disto. Estão no princípio de carreira e considero-os brilhantes em termos de humor. Não podem começar já a ser preguiçosos...

*Atenção, gatos: nem todos os ratos são cegos, nem surdos...

sábado, 26 de maio de 2007

Diz que é uma espécie de Gatos Fedorentos

Acabei de descobrir este video no YouTube. Aqui fica, para que conste.

Porque tenho muita consideração pelos Gatos Fedorentos e pela qualidade do seu humor, espero que se expliquem rapidamente e em público. Não posso acreditar que isto seja um plágio dos Gatos, seria lata a mais! É tudo praticamente igual, por isso espero que haja, algures no genérico do programa, uma alusão à fonte original...

É que eles não precisam disto, acho eu. São bons de mais para cair nestes erros infantis. Ou não?

Nostalgia


Hoje acordei nostálgica. De quê, nem sei bem.

Talvez de um tempo em que tudo era mais fácil, mais previsível. Em que o futuro era ainda uma carta fechada, mas daquelas que ansiamos muito por abrir. Como um presente. Sim, é isso. Um futuro que me era oferecido, com um embrulho deslumbrante e um laçarote encarnado.

Não que tivesse sido um presente envenenado. Não. Transformou-se num presente bonito, esse futuro prometido. Mas as expectativas dessas idades, sempre desmesuradas, fazem-nos afinal suspirar quando as coisas acontecem. Quando a vida acontece. Não de frustração, nem sequer de pena, mas de nostalgia por um tempo em que acreditámos que tudo, mesmo tudo, era possível.

Enquanto tudo se espera, tudo pode acontecer...

Aqui fica uma música desse tempo, e que fala "desse tempo" de utopia.
Yesterday, dos Beatles, claro. What else? Cliquem no verde para ouvir. E recordar.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Carta aberta

Encontrei, nos meus arquivos, esta carta que escrevi um dia para as Selecções do Reader's Digest. Foi há anos, mas o meu protesto irónico não resultou. Continuo a receber cartas, cuja imaginação ainda não se esgotou.
Porque me divertiu voltar a lê-la, não resisto a mostrá-la aqui. Espero que achem alguma graça.



Carta aberta ao Presidente do Comité de Concursos das Selecções do Reader's Digest



Meu caro amigo:

Espero que não se importe que o trate assim, num tom tão familiar, mas na verdade é você o culpado desta intimidade. Pensando bem, já recebi mais cartas suas do que de qualquer namorado, mesmo os mais inflamados.

A par dos infindáveis catálogos de roupa e casa, folhetos de promoções dos supermercados da zona e extractos bancários, as suas folclóricas cartas aí estão, sempre fiéis e pontuais na minha caixa do correio, e em triplicado!

Pois é: por uma incrível coincidência, aconteceu juntarem-se nesta casa três dos raros "privilegiados pertencentes à elite dos 4% residentes no distrito de Lisboa" que a sua empresa decidiu distinguir - eu, o meu ex marido e uma empregada que um dia teve a brilhante ideia de dar o meu endereço para encomendar o recheio da futura estante, pouco antes de se despedir.

As suas abordagens são de uma imaginação e persistência sem limites. Na última carta que me lembro de ter lido, dizia-me: "fiquei bastante admirado ao ter conhecimento de que os 4 Certificados de Finalista emitidos em seu nome, após selecção por computador, ainda não chegaram aos nossos serviços. É possível que a sua resposta se tenha cruzado com esta carta ou, muito simplesmente, que se tenha esquecido de nos responder".

Não, não esqueci. Aqui está a resposta.

Como calcula e planeou, é impossível não reparar nos seus envelopes. Chegam-me de todas as formas, tamanhos e cores, demonstrando uma dedicação a toda a prova para com alguém que nunca encomenda nada. É uma tortura: os meus filhos divertem-se a colar selos e autocolantes pelos espelhos e vidros das janelas, a misturar no meu chaveiro chaves reluzentes de Ferraris e Mercedes imaginários, a raspar cartõezinhos prateados - todos eles milagrosamente premiados - que espalham por toda a casa.

Sem mexer um dedo, sou sempre finalista de qualquer coisa (porque será que não tenho tanta sorte no Euromilhões?). E a tentação é grande - os milhões prometidos estão sempre quase, quase, ao alcance da mão. A prová-lo, meia dúzia de "felizes contemplados" sorridentes ali estão nos folhetos, em fotografias coloridas, a chamar-me idiota. Mas, ingrata como sou, recolho furiosa a interminável papelada e deito tudo fora.

É por isso que lhe peço: por favor, não perca mais tempo comigo. Guarde imaginação e papel para outros, menos mal-agradecidos ou com maior vocação para milionários. Pela minha parte, não prescindo do prazer de comprar os meus livros numa livraria, mesmo sem receber prémios por isso. O mesmo se passa com os discos. Devo ser masoquista...

Castigue-me de uma vez por todas: devolva-me aos pobres 96% que não foram escolhidos. É lá que mereço estar.

Espero ter finalmente respondido.

E, por favor, não me obrigue a dizer-lhe, noutro tom: VÁ PRIVILEGIAR OUTRO!

Com os meus cumprimentos

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Sinais de alarme

Recebi este texto de um amigo e não resisto a reproduzi-lo aqui na íntegra, tal é a importância da mensagem que encerra: será que, nesta feira de vaidades em que se tornou o mundo em que vivemos, só a embalagem nos agrada? Ou será que nos tornámos insensíveis ao ponto de sermos incapazes de reconhecer a beleza pela beleza, quando nos surge de forma inesperada?
Pensem nisto, e não deixem de ver o filme que acompanha a fantástica e oportuna iniciativa do Washington Post - é só clicar aqui.
Numa experiência inédita, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do Mundo, tocou incógnito durante 45 minutos, numa estação de metro de Washington, de manhã, em hora de ponta, despertando pouca ou nenhuma atenção. A provocatória iniciativa foi da responsabilidade do jornal "Washington Post", que pretendeu lançar um debate sobre arte, beleza e contextos. Ninguém reparou também que o violinista tocava com um Stradivarius de 1713 - que vale 3,5 milhões de dólares. Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam 100 dólares, mas na estação de metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós.
Bell, uma espécie de 'sex symbol' da clássica, actuou vestido de jeans, t-shirt e boné de basebol, e interpretou "Chaconne", de Bach, na sua opinião "uma das maiores peças musicais de sempre, mas também um dos grandes sucessos da história". Executou ainda "Ave Maria", de Schubert, e "Estrellita", de Manuel Ponce - mas a indiferença foi quase total. Esse facto, aparentemente, não impressionou os utentes do metro."Foi uma sensação muito estranha ver que as pessoas me ignoravam", disse Bell, habituado ao aplauso. "Num concerto, fico irritado se alguém tosse ou se um telemóvel toca. Mas no metro as minhas expectativas diminuíram. Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar", acrescentou. O sucedido motiva o debate: foi este um caso de "pérolas a porcos"? É a beleza um facto objectivo que se pode medir, ou tão-só uma opinião? Mark Leitahuse, director da Galeria Nacional de Arte, não se surpreende: "A arte tem de estar no seu contexto". E dá um exemplo: "Se tirarmos uma pintura famosa de um museu e a colocarmos num restaurante, ninguém a notará". Para outros, como o escritor John Lane, a experiência indica a "perda da capacidade de se apreciar a beleza". O escritor disse ao "Washington Post" que isto não significa que "as pessoas não tenham a capacidade de compreender a beleza, mas sim que ela deixou de ser relevante".

Dona Maria

Para completar esta homenagem à minha Mãe, transcrevo aqui parte de um poema do meu querido amigo e poeta maior Thiago de Mello, que, com a sua ternura, me ajudou (mais do que julga) a passar por este momento difícil. O poema chama-se "Dona Maria" - o nome da sua Mãe - e foi escrito no dia em que ela morreu.
(Juntei-lhe uma fotografia que encontrei por aí e que achei admirável. Não sei quem é o autor nem o modelo, mas pareceu-me uma Mãe - talvez a de todos nós - sábia e resignada, esperando o cumprimento inevitável de um ciclo).


DONA MARIA


Dona Maria está partindo.

Parece que está dormindo.

Mas já está chegando ao finzinho

do vale que leva à eternidade.



Quero só ver o que a eternidade

vai fazer com Dona Maria.

Ela sempre garantiu, desde mocinha,

que ia morar lá no céu.

E muito ouvi dela que Jesus,

de quem era serva fiel,

a esperava, contente.

Conversava com ele

como pessoa da sua maior intimidade.

Falava do céu como do jardim

cheio de roseiras e begónias

da casa dela na rua José Paranaguá.



Isso, ela. Eu, que não tenho lá essas certezas,

convencido de que a verdade da vida eterna

não chega a me dizer respeito,

acho que tenho o direito de esperar

que a Eternidade, com maiúscula,

dê a Dona Maria, pelo menos,

uma das tantas flores de bondade

que o seu coração repartiu

com o seu companheiro de vida,

os filhos (contando os de criação),

os irmãos, os parentes, as pessoas amigas,

e especialmente as desconhecidas,

pois a todos considerava filhos de Deus.



Sinto imensa precisão

de que ela me atenda mais uma vez.

Então lhe peço, como desde menino:

"A bênção, minha Mãe, Dona Maria!"

Mas desta vez ela não me responde,

como sempre fez, com sua fé prodigiosa:

"Deus te abençoe, meu filho,

Deus te faça feliz!"

Não me abençoará nunca mais.

Porque minha Mãe Dona Maria

acaba de partir para a eternidade.



A Poesia pode ser uma mão redentora. Neste caso, cumpriu esse papel com o zelo de um amigo próximo. Obrigada, Thiago. Espero poder um dia retribuir-te, de alguma forma.

domingo, 20 de maio de 2007

Mãe

É sabido que, quando morremos, todos nos transformamos em boas pessoas. Há um certo estatuto de superioridade no mistério da morte, que lança um véu dourado de temor e respeito nos que ficam e os faz mais benevolentes para com quem ascendeu a um plano desconhecido. Os defeitos são atenuados, as qualidades tendem a sobressair, quase tudo é perdoado.

Por outro lado, suponho que não será quase nunca difícil, para um filho, tecer comentários lisonjeiros acerca da sua mãe. A emoção domina-nos o vocabulário e incita-nos à exaltação de alguém que nos faz falta desde o preciso instante em que perdemos a sua presença protectora.

No caso da minha mãe – posso afirmá-lo sem qualquer dúvida ou hesitação – sei que não preciso de recorrer à parcialidade do amor filial nem à complacência que dá a morte para dizer, dela, que era um ser humano extraordinário. Quem a conheceu, ainda que tenha sido só superficialmente, poderá testemunhar a veracidade desta afirmação.

Foi, de facto, um exemplo admirável para nós, filhos, e também para todos os que conviveram com ela. A total entrega aos outros foi sempre o seu projecto de vida, e essa escolha aproximou-a muito daquilo a que nós, cristãos, chamamos santidade. Mesmo tendo sido uma mãe muito atenta, nunca foi verdadeiramente “nossa”. O seu mundo era incomparavelmente maior do que a família, e filhos eram todos os que precisassem dela, conhecidos ou não.

Era de um despojamento invulgar: não se interessava por coisas, nem elas lhe mereceram nunca grande atenção. Mas gostava de livros, sobretudo dos que descreviam expedições e viagens singulares. Também gostava de discos, principalmente de música clássica. Bach, Beethoven e Mozart foram os grandes companheiros dos seus últimos tempos. Fora isso, contentava-se com muito pouco e era tão naturalmente generosa que dava tudo o que tinha, com um encolher de ombros e uma expressão divertida que acabaram por tornar-se a sua imagem de marca.

Interessava-se, isso sim, por pessoas (por todas menos uma – ela própria). Não as diferenciava, a não ser por critérios de carácter e de qualidades humanas. Para os frívolos e mesquinhos não tinha a menor paciência, e mostrava-o sem disfarçar. Tinha amigos de todas as idades e de todos os estratos sociais, porque a sua alegria, sentido de humor e simplicidade eram contagiantes e faziam com que se sentisse bem em qualquer ambiente. Será muito difícil encontrar alguém que não tenha dela uma lembrança carinhosa.

Nunca foi uma típica dona de casa, como a maioria das mulheres da sua geração: independente por natureza, sustentou-se desde muito nova e realizou-se por inteiro numa vocação que parecia feita à sua medida – a medicina. Era uma mulher inteligente e culta, embora nunca caísse na tentação de exibir esses dotes para impressionar ou medir forças com alguém. De raízes urbanas e horizontes abertos, teve afinal que adaptar-se à rígida pequenez da província, numa época em que a sua profissão era vista com desconfiança e preconceito, quando desempenhada por uma mulher. Mas soube, sem guerras nem provocações, dar a volta a tudo e a todos, acabando por transformar em defensores fiéis os seus maiores críticos.
Sendo um espírito pragmático, científico, tinha também uma fé inabalável. Conciliava pacificamente evidências e mistérios incorpóreos, matéria e espírito, como se soubesse que cada um desses dois mundos ficaria incompleto sem o outro. Praticava, muito mais do que pregava, os preceitos de um Deus em quem acreditava profundamente.

Festejou 60 anos de curso com os amigos de sempre, e 84 de vida com a família próxima. Viveu uma vida plena e feliz mas teve, infelizmente, um fim duro. E até na doença e na morte foi um exemplo: aceitou o sofrimento extremo que lhe coube sem sombra de revolta e com a filosofia dos eleitos, captando o seu significado mais profundo. Talvez essa transcendência nos possa servir de consolo, perante uma tão flagrante injustiça.

Ficaria aqui, ad eternum, a contar episódios da vida da minha mãe. Há mil histórias, cómicas ou comoventes, que se tornaram célebres e que ficarão na nossa memória para sempre. Guardo-as com ternura e talvez arrisque contá-las um dia, mesmo sabendo que ficarei sempre aquém da verdade.

Hoje, dia em que partiu, fica por aqui esta homenagem.

Desapareceu uma Grande Mulher, mas apenas da nossa vista. Continuará tão presente como sempre, no coração de quem teve o privilégio de conhecê-la.
Até sempre, minha Mãe.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Da minha língua

Para não acabar a noite em branco (embora a tenha passado em branco), resta-me a humilhação de citar alguém. E, já que me rendo, deixo-me pelo menos humilhar com uma frase que considero muito boa:


"Homenagem a Vergílio Ferreira:
Da minha língua vêem-se os molares, os caninos e os incisivos."

Pedro Mexia, in Estado Civil

Pronto. Agora é hora de pôr a corda ao pescoço, despejar o frasco dos comprimidos e fazer com que o tiro não falhe.

Até...

Nada


Tenho uma directa pela frente, e com ela uma rara oportunidade de escrever nas condições ideais para mim: a casa em absoluto silêncio, nenhum sono, nenhuma distracção que me afaste do computador.
Tenho tudo, portanto.

Tenho tudo, repito, incluindo um pequeno pormenor: uma total ausência de inspiração.

Ou seja: não tenho nada.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

A Banda


Acordou estremunhada, um caos de sons estridentes a fritar-lhe os neurónios depois de uma noite de absoluta paz e silêncio, como há muito tempo não se lembrava de ter tido. Não percebeu a princípio onde estava, nem porque tinham os seus sonhos de infância sido assim invadidos por clarinetes e tambores em fúria ciclópica, atacando uma música vagamente familiar que nada tinha a ver com os seus tempos de menina.
A música… sim, era a “Grândola, vila morena”, e o dia… claro, o 25 de Abril.
Aos poucos voltou à realidade, à vida, ao presente doloroso. Estava na aldeia, naquela terra onde não pusera os pés durante tantos anos. Voltava agora, mais de 30 anos passados, e só por uma razão “de peso”. Franziu a cara num esgar de dor, enquanto os quase 120 quilos desafiavam a gravidade e tentavam erguer-se, sem consequências dramáticas, da periclitante cama de solteira. Depois de várias tentativas goradas, lá conseguiu e foi à janela, ainda a tempo de ver dobrar a esquina os últimos músicos festivos e domingueiros da banda filarmónica, num espalhafato que lhe pareceu quase grotesco.
Esquecera por completo, depois de tantos anos a viver na fleumática capital, aquele hábito ingénuo e provinciano de festejar tudo com fanfarras. Mas a verdade é que a banda da terra precisava de pretextos para sair à rua e exibir fardas e talentos, ou não valeria a pena o sacrifício das noites de ensaio, depois da dureza do dia de trabalho nos campos. E a efeméride da revolução de Abril era razão mais do que suficiente para festejar.
Ela é que não tinha nada para celebrar: voltara à terra para se isolar (os médicos tinham-lhe chamado descansar, recuperar e outras palavras animadoras, mas ela sabia bem que era para conseguir vencer-se a si própria, longe das testemunhas habituais). Enquanto se olhava no espelho gasto da casa de banho, reviu mentalmente o último ano da sua vida e as razões que a tinham levado até ali: o colapso inevitável do casamento, a profunda depressão em que caíra, o internamento por tentativa de suicídio, a longa e penosa terapia e, finalmente, aquela luz ao fundo do túnel, ainda ténue, ainda difícil de alcançar, mas a única a que podia agarrar-se. “Vamos avançar, Florinda. Acho que agora já está pronta para o próximo passo, a banda gástrica. Verá como 40 quilos a menos farão milagres pela sua auto estima! Mas tem que colaborar, ter muita força de vontade e fazer desse objectivo uma obrigação sagrada. A banda vai ajudá-la, claro, mas sem a sua determinação, nada feito… Posso contar consigo?” O Dr. Freitas tinha mais fé em si do que ela própria, ou então disfarçava bem. Parecia muito confiante e sorria sempre como se o mundo fosse uma festa interminável, o que chegava a ser irritante. Respondera que sim, claro. Que podia contar com ela. Que faria tudo para voltar a ser a mulher segura que fora um dia, milénios atrás.
E aqui estava agora, também por sugestão dele: “Mude de ares. Aproveite a baixa e vá até um sítio onde se sinta bem. Afaste-se de todas as suas rotinas, concentre-se em si. Uma vez na vida, mulher, pense SÓ em si!” Pensou, durante alguns dias. Mas não tinha dinheiro para viagens e a baixa psiquiátrica retirava-lhe uma fatia substancial do ordenado, já de si diminuto. O médico ganhava muito bem, com certeza, e não percebia que os doentes não eram milionários…
Mas sabia que ele tinha razão. Tinha que sair dali, do cenário da sua tragédia, para poder respirar fundo e reerguer-se. Os colegas de escritório, os vizinhos, até as meninas do supermercado tinham testemunhado cada lágrima perdida, cada quilo ganho. O marido abandonara-a com alarde, trocara-a por uma mulher mais nova e do bairro também, conhecida de todos. E os dois falavam… se falavam! Justificavam o adultério com motivos que ela nem sequer podia negar: o desinteresse crescente pela casa, o sexo impossível com um “monstro” que já nem podia mexer-se, a incapacidade de dar-lhe filhos, a fixação na comida como tábua de salvação. Sim, ela sabia que tinha ajudado a tornar sustentáveis aqueles argumentos.
A única solução que encontrara era esta, o regresso à aldeia. Os pais tinham morrido há muitos anos, não tinha irmãos. Aquela velha casa pertencia-lhe por direito, embora nunca tivesse vindo reclamá-la. A chave tinha estado, desde que ficara vazia, nas mãos de uma vizinha que a vira nascer. O marido detestara sempre a vida da província, nem de férias lá quisera ir nunca. E ela, por inércia e desgosto da falta dos pais, deixara-se também afastar, sem resistência.
Mas tudo isso era passado, agora tinha que concentrar-se em si. O médico prevenira-a contra pensamentos mórbidos e recorrentes, que o seu próprio ego maltratado construiria para impedir a cura e justificar recaídas. Tinha que derrotar a compulsão pela comida, a tentação do precipício. Talvez as recordações alegres da sua infância lhe devolvessem a auto confiança de que precisava para vencer aquela batalha. Chegara na véspera, à noitinha já, e só a vizinha sabia da sua presença ali porque lhe deixara a chave no vaso de sardinheiras da porta.
A noite tinha sido estranha, sem os sons da cidade a que estava habituada. A casa cheirava a mofo mas estava limpa, e qualquer coisa no ar despertara em si uma comoção e uma alegria que há muito tempo não conhecia.
Passou a mão pelo abdómen, dorido dos cortes e pontos recentes. A banda lá estava, ainda por insuflar, por enquanto só a marcar presença. Haveria de ter o seu papel na nova Florinda, lá mais para a frente, segundo lhe explicara o médico. Para já, e até as suas entranhas se adaptarem ao corpo estranho que se lhes colara, a função da banda era meramente psicológica e só com a sua própria força de vontade podia contar. Mas, caramba – concluiu com estranheza – como podiam os médicos confiar na força de vontade de doentes compulsivos, que se sujeitavam àquela provação exactamente porque a não tinham? Não era pedir de mais? Para que servia então a banda, se, quando se pudesse contar com ela, o principal trabalho já estava feito? Começava a achar tudo aquilo muito falível, mas tinha que colaborar. Prometera ao médico e a si própria. A mudança já prometia alguma coisa, pelo menos. Sentia-se renovada e quase feliz, com o ar do campo e a distância que interpusera entre si e as suas mágoas. Como dizia a canção, este era o primeiro dia do resto da sua vida. Respirou fundo e resolveu sair á rua.
Por todo o lado ressoava a música da filarmónica, que percorria as ruas e havia de parar no coreto da praça, com toda a pompa e circunstância. Dirigiu-se para lá, curiosa. Muitos ainda a conheciam, quase toda a população tinha a idade dos seus pais e avós. Percebeu que a olhavam com comiseração, o corpo disforme a suscitar comentários e suposições para mais tarde. Um bando de crianças passou a correr e empurrou-a com violência, apontando para ela entre gargalhadas. Começou a sentir-se mal, a velha insegurança a voltar aos seus domínios de sempre. Sentou-se num dos bancos da praça, cada vez mais enervada.
O dia era de festa. Em volta do coreto tinham acampado os feirantes, num estardalhaço de sapatos, roupas, cestos, galinhas, alfaias agrícolas e cassetes piratas. Um frenesim de gente comprava e vendia tudo. Os altifalantes anunciavam, aos berros, um circo com feras verdadeiras e artistas de todo o mundo, “como nunca se viu por cá”. Começou a ficar tonta com a poeirada e o barulho crescente da banda que se aproximava, ameaçadora. Todo aquele espectáculo a atordoava e repelia, mais do que lhe devolvia recordações de infância. Tinham sido muitos meses de total fragilidade, sabendo-se vigiada e protegida por médicos e terapeutas, e agora estava entregue àquela voragem medieval. Sozinha e longe do seu ambiente. O abismo estava em todo o lado, afinal, porque estava dentro de si.
Já em desespero, olhou em volta, à procura de um porto de abrigo. Encontrou-o, finalmente, na barraca das farturas e do pão quente com chouriço. Ao terceiro naco já sorria, totalmente descontraída, com a mão sobre o estômago onde repousava a banda oculta. E assim ficou, feliz de novo, a ver banda passar.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Uma história de pais


Nestes tempos que atravessamos, em que palavras como racismo, xenofobia, pedofilia, se tornaram banais a ponto de parecerem quase ter-se tornado a regra, uma história como a que aqui conto hoje reveste-se de especiais contornos. É uma hstória verídica, que a imaginação de nenhum autor ficcionou, aumentou ou deturpou. Relato-a com total fidelidade.
Exactamente por ser verídica, tem, como nenhuma ficção, o dom de devolver-nos a fé, já quase perdida, na Humanidade. Porque nos redime aos nossos próprios olhos, demonstrando-nos que ainda podemos salvar-nos da galopante insensibilidade geral. Porque nos obriga a procurar, num espelho, as raízes mais puras e ainda vivas da nossa condição humana.
Tive apenas o cuidado de substituir os nomes dos intervenientes, por respeito à sua privacidade. É uma história curta e simples, como o são todas as grandes histórias que a vida nos oferece como exemplo. Conta-se em duas penadas, mas ficará na vossa memória, espero, por muito tempo.

É a história do jovem Diogo e do cigano Sancho. Ambos pais, ambos condenados ao infortúnio, mas por diferentes razões.

Sancho é um dos muitos vendedores clandestinos do submundo das falsificações e dos produtos roubados, e o seu “escritório” é, habitualmente, toda a praça do Marquês de Pombal. Diogo, 24 anos, é o filho privilegiado de um empresário próspero e bastante rico, que também tem escritório no Marquês (esse com tecto, embora com uma área mais reduzida...).

Nada parece ser-lhes comum. Nada que os aproxime, nada que explique uma amizade. Os seus dois mundos são irremediavelmente insolúveis. No entanto, desafiando toda a lógica, Sancho marca presença, sentidamente, num acontecimento inesperado: o funeral de Diogo, brutal e prematuramente morto num acidente de moto. Muito jovem ainda, mas já pai de uma criança. Uma tragédia.

A família repara naquela presença estranha, mas está ainda em choque, não dá demasiada importância. Mas na missa do 7º dia lá está de novo o cigano, comovido. E desta vez a pergunta impõe-se: Porquê? Que obscuras razões por detrás desta atitude? Que assustador passado ignorado de todos? Preocupado, o pai de Diogo não resiste e aborda a figura dissonante naquela assembleia. E é então que a explicação, colada a um sorriso triste, surge clara, redentora, único bálsamo naquela hora insuportável:

Não, não eram propriamente amigos. Mas eram, talvez, muito mais do que isso. Unia-os um indelével laço de solidariedade e confiança. E tudo porque, tempos atrás, Diogo o encontrara, a chorar, à porta do prédio do escritório do pai. Contra todas as expectativas, perguntara ao cigano desconhecido o que tinha, interessara-se. E Sancho contara-lhe, entre lágrimas: era um dia muito triste para si, fazia um ano que o seu filho fora morto pelo sogro numa rixa passional, e tinha muitas saudades. A velha honra cigana – “filha minha pode ser viúva, mas nunca divorciada!”. Por isso estava naquele desconsolo.

Diogo levava ao colo o seu próprio filho, um bebé de 6 meses. Comovera-o aquele desespero de pai. E não hesitara. Instintivamente confiante, como se o gesto fosse absolutamente natural, deixara o bebé à guarda de Sancho enquanto subia para ir ter, também ele, com o seu pai. Quando voltara a buscá-lo, passado um bom bocado, o cigano ainda brincava com o bebé e ambos riam, satisfeitos.