sexta-feira, 25 de maio de 2007

Carta aberta

Encontrei, nos meus arquivos, esta carta que escrevi um dia para as Selecções do Reader's Digest. Foi há anos, mas o meu protesto irónico não resultou. Continuo a receber cartas, cuja imaginação ainda não se esgotou.
Porque me divertiu voltar a lê-la, não resisto a mostrá-la aqui. Espero que achem alguma graça.



Carta aberta ao Presidente do Comité de Concursos das Selecções do Reader's Digest



Meu caro amigo:

Espero que não se importe que o trate assim, num tom tão familiar, mas na verdade é você o culpado desta intimidade. Pensando bem, já recebi mais cartas suas do que de qualquer namorado, mesmo os mais inflamados.

A par dos infindáveis catálogos de roupa e casa, folhetos de promoções dos supermercados da zona e extractos bancários, as suas folclóricas cartas aí estão, sempre fiéis e pontuais na minha caixa do correio, e em triplicado!

Pois é: por uma incrível coincidência, aconteceu juntarem-se nesta casa três dos raros "privilegiados pertencentes à elite dos 4% residentes no distrito de Lisboa" que a sua empresa decidiu distinguir - eu, o meu ex marido e uma empregada que um dia teve a brilhante ideia de dar o meu endereço para encomendar o recheio da futura estante, pouco antes de se despedir.

As suas abordagens são de uma imaginação e persistência sem limites. Na última carta que me lembro de ter lido, dizia-me: "fiquei bastante admirado ao ter conhecimento de que os 4 Certificados de Finalista emitidos em seu nome, após selecção por computador, ainda não chegaram aos nossos serviços. É possível que a sua resposta se tenha cruzado com esta carta ou, muito simplesmente, que se tenha esquecido de nos responder".

Não, não esqueci. Aqui está a resposta.

Como calcula e planeou, é impossível não reparar nos seus envelopes. Chegam-me de todas as formas, tamanhos e cores, demonstrando uma dedicação a toda a prova para com alguém que nunca encomenda nada. É uma tortura: os meus filhos divertem-se a colar selos e autocolantes pelos espelhos e vidros das janelas, a misturar no meu chaveiro chaves reluzentes de Ferraris e Mercedes imaginários, a raspar cartõezinhos prateados - todos eles milagrosamente premiados - que espalham por toda a casa.

Sem mexer um dedo, sou sempre finalista de qualquer coisa (porque será que não tenho tanta sorte no Euromilhões?). E a tentação é grande - os milhões prometidos estão sempre quase, quase, ao alcance da mão. A prová-lo, meia dúzia de "felizes contemplados" sorridentes ali estão nos folhetos, em fotografias coloridas, a chamar-me idiota. Mas, ingrata como sou, recolho furiosa a interminável papelada e deito tudo fora.

É por isso que lhe peço: por favor, não perca mais tempo comigo. Guarde imaginação e papel para outros, menos mal-agradecidos ou com maior vocação para milionários. Pela minha parte, não prescindo do prazer de comprar os meus livros numa livraria, mesmo sem receber prémios por isso. O mesmo se passa com os discos. Devo ser masoquista...

Castigue-me de uma vez por todas: devolva-me aos pobres 96% que não foram escolhidos. É lá que mereço estar.

Espero ter finalmente respondido.

E, por favor, não me obrigue a dizer-lhe, noutro tom: VÁ PRIVILEGIAR OUTRO!

Com os meus cumprimentos

1 comments:

Mad disse...

B-R-I-L-H-A-N-T-E!!!!!