quarta-feira, 2 de maio de 2007

Uma história de pais


Nestes tempos que atravessamos, em que palavras como racismo, xenofobia, pedofilia, se tornaram banais a ponto de parecerem quase ter-se tornado a regra, uma história como a que aqui conto hoje reveste-se de especiais contornos. É uma hstória verídica, que a imaginação de nenhum autor ficcionou, aumentou ou deturpou. Relato-a com total fidelidade.
Exactamente por ser verídica, tem, como nenhuma ficção, o dom de devolver-nos a fé, já quase perdida, na Humanidade. Porque nos redime aos nossos próprios olhos, demonstrando-nos que ainda podemos salvar-nos da galopante insensibilidade geral. Porque nos obriga a procurar, num espelho, as raízes mais puras e ainda vivas da nossa condição humana.
Tive apenas o cuidado de substituir os nomes dos intervenientes, por respeito à sua privacidade. É uma história curta e simples, como o são todas as grandes histórias que a vida nos oferece como exemplo. Conta-se em duas penadas, mas ficará na vossa memória, espero, por muito tempo.

É a história do jovem Diogo e do cigano Sancho. Ambos pais, ambos condenados ao infortúnio, mas por diferentes razões.

Sancho é um dos muitos vendedores clandestinos do submundo das falsificações e dos produtos roubados, e o seu “escritório” é, habitualmente, toda a praça do Marquês de Pombal. Diogo, 24 anos, é o filho privilegiado de um empresário próspero e bastante rico, que também tem escritório no Marquês (esse com tecto, embora com uma área mais reduzida...).

Nada parece ser-lhes comum. Nada que os aproxime, nada que explique uma amizade. Os seus dois mundos são irremediavelmente insolúveis. No entanto, desafiando toda a lógica, Sancho marca presença, sentidamente, num acontecimento inesperado: o funeral de Diogo, brutal e prematuramente morto num acidente de moto. Muito jovem ainda, mas já pai de uma criança. Uma tragédia.

A família repara naquela presença estranha, mas está ainda em choque, não dá demasiada importância. Mas na missa do 7º dia lá está de novo o cigano, comovido. E desta vez a pergunta impõe-se: Porquê? Que obscuras razões por detrás desta atitude? Que assustador passado ignorado de todos? Preocupado, o pai de Diogo não resiste e aborda a figura dissonante naquela assembleia. E é então que a explicação, colada a um sorriso triste, surge clara, redentora, único bálsamo naquela hora insuportável:

Não, não eram propriamente amigos. Mas eram, talvez, muito mais do que isso. Unia-os um indelével laço de solidariedade e confiança. E tudo porque, tempos atrás, Diogo o encontrara, a chorar, à porta do prédio do escritório do pai. Contra todas as expectativas, perguntara ao cigano desconhecido o que tinha, interessara-se. E Sancho contara-lhe, entre lágrimas: era um dia muito triste para si, fazia um ano que o seu filho fora morto pelo sogro numa rixa passional, e tinha muitas saudades. A velha honra cigana – “filha minha pode ser viúva, mas nunca divorciada!”. Por isso estava naquele desconsolo.

Diogo levava ao colo o seu próprio filho, um bebé de 6 meses. Comovera-o aquele desespero de pai. E não hesitara. Instintivamente confiante, como se o gesto fosse absolutamente natural, deixara o bebé à guarda de Sancho enquanto subia para ir ter, também ele, com o seu pai. Quando voltara a buscá-lo, passado um bom bocado, o cigano ainda brincava com o bebé e ambos riam, satisfeitos.

1 comments:

Anónimo disse...

Parabéns pelo Blog. Sem dúvida, um espaço a voltar.