Acordou estremunhada, um caos de sons estridentes a fritar-lhe os neurónios depois de uma noite de absoluta paz e silêncio, como há muito tempo não se lembrava de ter tido. Não percebeu a princípio onde estava, nem porque tinham os seus sonhos de infância sido assim invadidos por clarinetes e tambores em fúria ciclópica, atacando uma música vagamente familiar que nada tinha a ver com os seus tempos de menina. A música… sim, era a “Grândola, vila morena”, e o dia… claro, o 25 de Abril. Aos poucos voltou à realidade, à vida, ao presente doloroso. Estava na aldeia, naquela terra onde não pusera os pés durante tantos anos. Voltava agora, mais de 30 anos passados, e só por uma razão “de peso”. Franziu a cara num esgar de dor, enquanto os quase 120 quilos desafiavam a gravidade e tentavam erguer-se, sem consequências dramáticas, da periclitante cama de solteira. Depois de várias tentativas goradas, lá conseguiu e foi à janela, ainda a tempo de ver dobrar a esquina os últimos músicos festivos e domingueiros da banda filarmónica, num espalhafato que lhe pareceu quase grotesco. Esquecera por completo, depois de tantos anos a viver na fleumática capital, aquele hábito ingénuo e provinciano de festejar tudo com fanfarras. Mas a verdade é que a banda da terra precisava de pretextos para sair à rua e exibir fardas e talentos, ou não valeria a pena o sacrifício das noites de ensaio, depois da dureza do dia de trabalho nos campos. E a efeméride da revolução de Abril era razão mais do que suficiente para festejar. Ela é que não tinha nada para celebrar: voltara à terra para se isolar (os médicos tinham-lhe chamado descansar, recuperar e outras palavras animadoras, mas ela sabia bem que era para conseguir vencer-se a si própria, longe das testemunhas habituais). Enquanto se olhava no espelho gasto da casa de banho, reviu mentalmente o último ano da sua vida e as razões que a tinham levado até ali: o colapso inevitável do casamento, a profunda depressão em que caíra, o internamento por tentativa de suicídio, a longa e penosa terapia e, finalmente, aquela luz ao fundo do túnel, ainda ténue, ainda difícil de alcançar, mas a única a que podia agarrar-se. “Vamos avançar, Florinda. Acho que agora já está pronta para o próximo passo, a banda gástrica. Verá como 40 quilos a menos farão milagres pela sua auto estima! Mas tem que colaborar, ter muita força de vontade e fazer desse objectivo uma obrigação sagrada. A banda vai ajudá-la, claro, mas sem a sua determinação, nada feito… Posso contar consigo?” O Dr. Freitas tinha mais fé em si do que ela própria, ou então disfarçava bem. Parecia muito confiante e sorria sempre como se o mundo fosse uma festa interminável, o que chegava a ser irritante. Respondera que sim, claro. Que podia contar com ela. Que faria tudo para voltar a ser a mulher segura que fora um dia, milénios atrás. E aqui estava agora, também por sugestão dele: “Mude de ares. Aproveite a baixa e vá até um sítio onde se sinta bem. Afaste-se de todas as suas rotinas, concentre-se em si. Uma vez na vida, mulher, pense SÓ em si!” Pensou, durante alguns dias. Mas não tinha dinheiro para viagens e a baixa psiquiátrica retirava-lhe uma fatia substancial do ordenado, já de si diminuto. O médico ganhava muito bem, com certeza, e não percebia que os doentes não eram milionários… Mas sabia que ele tinha razão. Tinha que sair dali, do cenário da sua tragédia, para poder respirar fundo e reerguer-se. Os colegas de escritório, os vizinhos, até as meninas do supermercado tinham testemunhado cada lágrima perdida, cada quilo ganho. O marido abandonara-a com alarde, trocara-a por uma mulher mais nova e do bairro também, conhecida de todos. E os dois falavam… se falavam! Justificavam o adultério com motivos que ela nem sequer podia negar: o desinteresse crescente pela casa, o sexo impossível com um “monstro” que já nem podia mexer-se, a incapacidade de dar-lhe filhos, a fixação na comida como tábua de salvação. Sim, ela sabia que tinha ajudado a tornar sustentáveis aqueles argumentos. A única solução que encontrara era esta, o regresso à aldeia. Os pais tinham morrido há muitos anos, não tinha irmãos. Aquela velha casa pertencia-lhe por direito, embora nunca tivesse vindo reclamá-la. A chave tinha estado, desde que ficara vazia, nas mãos de uma vizinha que a vira nascer. O marido detestara sempre a vida da província, nem de férias lá quisera ir nunca. E ela, por inércia e desgosto da falta dos pais, deixara-se também afastar, sem resistência. Mas tudo isso era passado, agora tinha que concentrar-se em si. O médico prevenira-a contra pensamentos mórbidos e recorrentes, que o seu próprio ego maltratado construiria para impedir a cura e justificar recaídas. Tinha que derrotar a compulsão pela comida, a tentação do precipício. Talvez as recordações alegres da sua infância lhe devolvessem a auto confiança de que precisava para vencer aquela batalha. Chegara na véspera, à noitinha já, e só a vizinha sabia da sua presença ali porque lhe deixara a chave no vaso de sardinheiras da porta. A noite tinha sido estranha, sem os sons da cidade a que estava habituada. A casa cheirava a mofo mas estava limpa, e qualquer coisa no ar despertara em si uma comoção e uma alegria que há muito tempo não conhecia. Passou a mão pelo abdómen, dorido dos cortes e pontos recentes. A banda lá estava, ainda por insuflar, por enquanto só a marcar presença. Haveria de ter o seu papel na nova Florinda, lá mais para a frente, segundo lhe explicara o médico. Para já, e até as suas entranhas se adaptarem ao corpo estranho que se lhes colara, a função da banda era meramente psicológica e só com a sua própria força de vontade podia contar. Mas, caramba – concluiu com estranheza – como podiam os médicos confiar na força de vontade de doentes compulsivos, que se sujeitavam àquela provação exactamente porque a não tinham? Não era pedir de mais? Para que servia então a banda, se, quando se pudesse contar com ela, o principal trabalho já estava feito? Começava a achar tudo aquilo muito falível, mas tinha que colaborar. Prometera ao médico e a si própria. A mudança já prometia alguma coisa, pelo menos. Sentia-se renovada e quase feliz, com o ar do campo e a distância que interpusera entre si e as suas mágoas. Como dizia a canção, este era o primeiro dia do resto da sua vida. Respirou fundo e resolveu sair á rua. Por todo o lado ressoava a música da filarmónica, que percorria as ruas e havia de parar no coreto da praça, com toda a pompa e circunstância. Dirigiu-se para lá, curiosa. Muitos ainda a conheciam, quase toda a população tinha a idade dos seus pais e avós. Percebeu que a olhavam com comiseração, o corpo disforme a suscitar comentários e suposições para mais tarde. Um bando de crianças passou a correr e empurrou-a com violência, apontando para ela entre gargalhadas. Começou a sentir-se mal, a velha insegurança a voltar aos seus domínios de sempre. Sentou-se num dos bancos da praça, cada vez mais enervada. O dia era de festa. Em volta do coreto tinham acampado os feirantes, num estardalhaço de sapatos, roupas, cestos, galinhas, alfaias agrícolas e cassetes piratas. Um frenesim de gente comprava e vendia tudo. Os altifalantes anunciavam, aos berros, um circo com feras verdadeiras e artistas de todo o mundo, “como nunca se viu por cá”. Começou a ficar tonta com a poeirada e o barulho crescente da banda que se aproximava, ameaçadora. Todo aquele espectáculo a atordoava e repelia, mais do que lhe devolvia recordações de infância. Tinham sido muitos meses de total fragilidade, sabendo-se vigiada e protegida por médicos e terapeutas, e agora estava entregue àquela voragem medieval. Sozinha e longe do seu ambiente. O abismo estava em todo o lado, afinal, porque estava dentro de si. Já em desespero, olhou em volta, à procura de um porto de abrigo. Encontrou-o, finalmente, na barraca das farturas e do pão quente com chouriço. Ao terceiro naco já sorria, totalmente descontraída, com a mão sobre o estômago onde repousava a banda oculta. E assim ficou, feliz de novo, a ver banda passar.
sexta-feira, 11 de maio de 2007
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6 comments:
Qual é o segredo para escrever sem pensar que vai ser lido por milhões (e viva a modéstia)? Enfio umas caipirinhas e vai disto?
231 visitas?!!!!!
UAU!!!
Bem... o que dizer?
Isto é que é saber escrever, isto é que é um blog, isto... envergonha-me.
Como ainda vou tendo uma costela jonalista, tomei a liberdade de cruzar comentários, links e afins, para chegar até aqui.
Comentei duas vezes o seu comentário ao meu post sobre a Ségolène Royal.
Um primeiro comentário, entre o zangado e o amuado, por ter-me chamado "ignorante".
Um segundo comentário, bajulando-a descaradamente.
Espero que passe por lá para conferir os tais documentários e, acima de tudo para ir lendo as parvoíces que vou escrevendo.
Obrigado.
Foi uma honra.
JPC
http://oeldorado.blogspot.com/
Como seria bom eu conseguir exprimir-me como tu.É um dom que Deus te deu.Usa-o como tão bem sabes. L.Y.
EU
jpc:
já passei por lá, como verás. Obrigada pelos elogios ao blog e espero que encontres rapidamente um meio termo entre o amuo e a bajulação (nenhum dos dois me agrada muito). Vá lá... não há-de ser difícil para quem, como tu, não é obviamente ignorante.
mad:
Com ou sem caipirinhas, convenhamos que a probabilidade de seres lida por milhões é remota. Por isso descontrai e escreve para ti própria, o único público realmente garantido!
Quanto ao número de visitas da Porta do Vento, vai de vento em popa mesmo. Mais uns tempos e isto transforma-se numa casa de passe. Exactamente como se pretendia...
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