quinta-feira, 20 de março de 2008

Jardim da Preta

Domingo passado, depois do almoço. Subi as escadas do largo do Palácio da Vila, invadido de turistas e famílias portuguesas em passeio. Diriji-me ao guarda de serviço, que olhava o quadro à sua volta com um enfado evidente.


- Boa tarde. O Jardim da Preta está aberto? Posso lá ir?
- Fazer o quê? (O enfado anterior pareceu-me ter passado a ódio. Por mim.)
- Passear, claro. Não posso?
- Não, não pode. O Jardim está fechado há muito tempo, para restauro. (Fantasia minha, ou esta frase de proibição causou-lhe verdadeiro prazer?)
- E quando volta a abrir ao público?
- Não sei. Mas não vai ser tão depressa, está tudo parado.
- Oh, que pena! Não pode abrir-me a porta, só para matar saudades e tirar uma fotografia?
- Não. Não tenho autorização.
Assunto arrumado, portanto. Comecei a afastar-me, triste pela decepção e irritada com tanta antipatia explícita. Fiquei a olhar a porta fechada e o muro branco, tentando divisar alguma coisa do outro lado. Como se tivesse visão raio-x, sei lá. Quando era criança e brincava ali dentro, acreditava nisso e em muito mais. E foi então que alguém me tocou no braço.
- A senhora quer entrar no Jardim da Preta, porquê? (A rapariga fardada tinha um sorriso franco, parecia realmente interessada em dar-me uma alegria. Que diferença do outro!)
- Porque tenho saudades e já não vou lá há muitos anos. E gostava de tirar uma fotografia ao tanque da Preta, só isso. Pode abrir-me a porta, só por um bocadinho? Juro que não demoro. (A esperança renascia em mim, naquele momento, com a força da notícia de uma vitória no euromilhões.)
- Eu não posso, mas acho que está com sorte. Aquele senhor ali (apontava-me um homem de bigode, a um canto) é o encarregado da obra do Jardim. Hoje apareceu por cá e é ele que tem a chave. Peça-lhe, talvez ele deixe. (O tom cúmplice comoveu-me).
Agradeci-lhe e voei para o homem do bigode, com o meu melhor sorriso. Demorei um bocadinho a convencê-lo de que não era uma jornalista a espiolhar incúrias camarárias. Por fim, depois de fazer-me um curto mas cirúrgico inquérito, destinado a confirmar se eu conhecia, como dizia, cada recanto do Jardim (passei com distinção: conheço-o a palmo e de olhos fechados) deu-me a maior alegria que podia dar-me - abriu a porta, trancada com uma velha chave de ferro (Abre-te, Sésamo!) e deu-me passagem para o mundo encantado, mágico e imutável, que é sempre o mundo da nossa infância.
Entrei com lágrimas nos olhos e passos tímidos, como se fosse violar um sacrário. Fiquei por ali um bocado, invadida por uma comoção tão forte que me fazia passar a mão pelos canteiros, pelo tanque, pelas figuras de estuque, esboroado pelo tempo e pelo desleixo de quem devia cuidá-las. Tudo aquilo a precisar de restauro urgente, de facto. "Mas não há verba, minha senhora, é um dó. Isto vai tudo desaparecer". O homem do bigode percebera que eu estava em transe e deixava-me vaguear por ali. Mal o ouvia, nas suas queixas mais do que justificadas contra um poder que nega a recuperação de um património mundial. Ou de um património emocional, como eu o sentia naquele momento. O imponente castelo reflectido na água esverdeada, o grande leão de pedra, a criada preta debruçada no tanque da roupa, o galante fidalgo que a olha, embevecido e apaixonado... e, enfim, todas as infindáveis histórias que a minha imaginação fértil de criança inventou um dia para aquelas figuras, tudo me puxava para uma dimensão mítica, difusa, uma espécie de paraíso perdido.
- Agora tenho mesmo que fechar a porta, minha senhora. Vamos?
Obedeci-lhe, claro. Nem sei há quanto tempo estava ali, obrigando o pobre homem a esperar por mim. Ainda fiz, à pressa, estas fotografias, que não fazem justiça à magia daquele lugar. Agradeci-lhe mais uma vez, ainda comovida. E fui dar um beijo repenicado à rapariga sorridente que me proporcionara todo este luxo (o Jardim da Preta, só para mim!), que ficou a sorrir ainda mais. Se não tivesse vergonha de fazer essas coisas, teria metido uma nota no bolso da farda azul escura, discretamente. Mas não consigo fazê-lo em nenhuma circunstância, tenho sempre medo de ofender o destinatário. Sei que eu me ofenderia, se alguém me fizesse isso. Portanto, disse-lhe só um "obrigada", em voz trémula. E fui passear, feliz.

17 comments:

Anónimo disse...

Aniuska queridíssima:
Olha, desculpa lá, mas terei que falar bem de ti, fazer o quê?
Escreves bem pra dedéu!
Pensei, logo ao chegar que teria um relato de jornalismo fotográfico. Estaria bem, eu gosto.
Mas não é que após ler senti-me com o efeito do conhaque de nosso grande Poeta Drummomnd: puseste-me comovida como o diabo!
Putzgrilo!

Olha, desculpa sim,
BTW, tenho boas notícias, logo mais escrevo-te querida.
Beijos e mais beijos
Meggy

O Réprobo disse...

Querida Ana,
Ela deve ter ficado muito mais contente com o beijo do que com a nota, esperemos, pelo menos. Não custa idealizar o Outro. E, no universo masculino, creio que corresponde àquela codificação vetusta que separava o bem-agir da escolha pobre do mesmo - seria ocasião para um charuto, por reconhecimento de um favor. Nunca para uma gorjeta, que sublinha a satisfação com um serviço.
Quanto a outra empatia, a do lugar e à emoção perante o desvanecimento da pujança do que recordamos, que dizer? São trechos como estes que prendem qualquer um a esta Porta, mesmo que não sintam o que eu, inegavelmente nutro, um afecto entusiasta pela Autora.
A nostalgia tem du bon.
Beijinho

ana v. disse...

Meguita,
Ter o efeito de um conhaque é muito mais do que posso desejar, querida!! Obrigada pelas tuas palavras. E fico à espera das boas notícias, via mail.
Adora essa vossa expressão - "putzgrilo". Um dia hás-de explicar-me de onde vem isso, que eu não faço ideia...
;)

Paulo, essa sua forma subtil e requintada de estar na vida é uma das coisas que mais aprecio em si. Oferecer um charuto a um homem como agradecimento é um gesto que se perdeu, e é pena. A ASAE não perdoa...
Mas tem razão, claro: uma gorjeta (coisa que detesto) é um gesto de sobranceria, embora seja prática corrente. E a verdade é que os miseráveis salários que as pessoas têm o explicam e (quase) o justificam. Sou incapaz de fazê-lo, como disse, mas fico muitas vezes com a sensação de que se esperava isso de mim. Não foi este o caso. Acho que foi pura simpatia desinteressada, a daquela rapariga.
Um beijinho

Sofia K. disse...

Olha que eu dou-te!!! Sabes como andam as minhas emoções. Ligo o computador a ver se me me arrancas sorrisos e acabo de lágrimas nos olhos, mas isto agora é um blogue sentimental?

Ai, ai...

Posso ler o próximo post, ou também apela ao sentimento?

beijos

miguel disse...

Eu cá prefiro poupar-me a tipos mal-humorados, a inquéritos e a gorjetas. Gosto de ir ao Palácio da Vila, sim, mas como ponto de partida para uma corrida fantástica até ao Cabo da Roca, subindo à Pena e à Peninha e descendo, veloz, até ao dito cujo Cabo, passando pela Azóia. é assim que , para mim, sintra vale a pena.Quais travesseiros, quais jardins. É mas é Sintra toda, a natureza e o esforço para a vencer. 1H25m. Uma sensação incrivel no final. e transporte pago de volta, até ao Palácio da Vila. É este o meu Palácio da Vila...ponto de partida e chegada 8 por acaso já lá vi uns concertos).

Se isto não é boicotar uma belíssima entrada, então expliquem-me o que é um bocote :)

ana v. disse...

Um "bocote" não sabemos o que é, Speedy Gonzalez... vais ter mesmo que explicar-nos tu!

Beijinhos, já me puseste a rir com o teu comentário.
Boas corridas. E no fim, para a próxima, experimenta um travesseiro...

ana v. disse...

Sofia,
Mas isto SEMPRE FOI um blog sentimental... lamechas mesmo, se quiseres.
beijinhos

Luísa A. disse...

Aí está, minha cara AV, o que faz tão interessantes as suas fotografias: uma belíssima história. Lembraram-me, também, de um dos contos da minha infância, «As três nozes», em que… estava a criada preta a lavar roupa no tanque e a mirar-se no espelho das águas, quando…

Anónimo disse...

Que grata surpresa, querida AV que tanto reconheço dos comentários na Gota. Achei de vir no momento certo, pelo visto. Emocionou-me o teu relato, muitíssimo mesmo. Lembrei de algumas visitas que às vezes faço aos "meus lugares" de infância e como me dói o descuido na preservação deles. Tens o dom de partilhar com as palavras certas o que sentes, pois o sentimento tá cá reflectido... bem no fundinho do meu peito. Obrigada pelo passeio pelo Jardim da Preta, como foi e como está, só não te coloco uma nota de dez reais no bolso porque aí mesmo é que te ofendias, já que o nosso dinheirinho brasuca já num vale nada (rsrsrs--> esta foi só pra brincar!) bjs.

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

são uns criminosos...

Que emoção este post, Ana!...

beijinho

João Paulo Cardoso disse...

É só para dizer que já é Páscoa no "Eldorado".

Beijos.

João Paulo Cardoso disse...

Deixei comentário no teu 500º post.

Beijos.

ana v. disse...

Querida Luísa,
Vá lá, conte-nos o resto... agora fiquei com vontade de saber o final, porque não me lembro dessa história.
Obrigada pelas suas palavras. E as minhas fotografias são pouco interessantes, tiradas com o telemóvel e por uma naba nessas artes.
Um beijinho

Cora,
Que bom te ver por aqui. Sei que és amiga da Meg e da Teresa, e... os amigos dos meus amigos, meus amigos são! Ainda bem que gostou de passear comigo por Sintra e fico à espera de passear contigo lá no Brasil!
Volta sempre.
Um beijo

Júlia,
Pois são, minha amiga, pois são. Estas figuras de estuque em tamanho natural são muito bonitas e originais, do séc. XVII, e estão a ficar completamente estragadas. Uma pena.
Um beijo

João Paulo,
Antecipaste a Páscoa? Só tu.
Tem cuidado com o que dizes sobre burkas e explosivos no Eldorado, olha o Bin Laden e as suas ameaças aos hereges ocidentais...
Um beijo

Boa Páscoa a todos.

samuel disse...

Bela estória!

ana v. disse...

Obrigada, Samuel.

AC disse...

Que lindo texto! Acabei eu tb feliz e comovido. Um beijo

ana v. disse...

AC,
então estamos quites: eu também já me comovi com textos seus, meu amigo.
Um beijo