terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Só para dizer

Na minha geração o verbo amar não se conjuga em voz alta, porque as pessoas da minha geração não sabem dizer o amor. Sabem senti-lo, sabem fazê-lo e sabem sentir-lhe a falta. Sabem dá-lo e recebê-lo sem reservas, sabem viver com ele e até morrer por ele. Mas não sabem dizê-lo.

Não falo, evidentemente, dos poetas, prosadores e letristas. Esses tratam as palavras por tu, afagam-nas e brincam com elas como se fossem brinquedos. Refiro-me aos cidadãos comuns, reféns de um estranho atavismo geracional que aboliu, sem apelo nem agravo, a confissão expressa do mais belo sentimento que existe.

Quando começámos a ter idade para os primeiros namoros, o léxico de que dispúnhamos era limitadíssimo: era francamente "piroso" ir além do tímido gosto de ti. Gosto muito de ti ainda era admissível, mas ficava reservado para os momentos mais empolgados. E tudo tinha que ficar dito assim, de uma forma acanhada e pobre, entregue à imaginação e interpretação de quem recebia a mensagem. Depois, saltava-se do gosto de ti para a enorme desproporção do adoro-te. Pelo meio, irremediavelmente proscrito, ficava o tal amo-te que era absolutamente impensável, caso mesmo para a total desclassificação social.

E assim crescemos e amámos, impedidos de exprimir com inteira liberdade o que sentíamos, privados de um verbo essencial. Aprendemos a socorrer-nos de truques - a tradução para outras línguas - je t'aime ou I love you eram não só expressões permitidas como muito apreciadas. As canções românticas falavam por nós, livres do preconceito linguístico. Eram a nossa vingança. Também os cantores brasileiros eram, muitas vezes, os nossos preciosos Cyranos, acrescentando o mel da pronúncia ao proibidíssimo eu te amo.

Hoje em dia tudo isso mudou radicalmente, a ponto de termos caído no extremo oposto. Antes assim, apesar de tudo. Mas, quando vejo os concorrentes de um qualquer reality show, de lágrima ao canto do olho, esbanjarem pungentes "amo-te muito" com total displicência, atirando-os através do ecrã aos avós, pais, namoradas e animais de estimação (praticamente em igualdade de circunstâncias), lembro-me da falta que me fizeram esses mimos quando queria pronunciá-los e não podia. Porque não me ficava bem dizê-los. Porque arranhavam o ouvido e se enrolavam na língua, não tanto por culpa de uma fonética arrevesada como de um preconceito idiota.

(Clã - Problema de expressão)

23 comments:

miguel disse...

Ana: lá volto eu à questão dos conceitos redutores ou à minha vontade de os ver de maneira abrangente. A forma de amar mais significativa talvez se baseie no silêncio junto com a acção. E não necessariamente a dois. A Madre Teresa de Calcutá amava diariamente, no afago discreto mas forte com que confortava os moribundos. Te-lo-á feito milhares de vezes sem pedir uma troca que sabia impossível. Ela não amou outro, amou os outros.Foi, por isso, testemunho de uma nova forma de amar.
Posto isto,acho que a expressão verbalizada no amor a dois ( ou discuti-la) é um infímo pormenor que pode tornar-se num capricho, numa necessidade de mimo desmedida,numa visão muito redutora daquilo que se pretende do outro e da vida.É assim que vou vendo e quero ver esta questão do amor e do "amo-te".Mas, caramba, tens toda a legitimidade para a desenvolver neste teu excelente espaço!

ana v. disse...

E mais uma vez, Miguel, não estamos de acordo. O que não tem a menor importância, e é até muito saudável.

Percebo o teu ponto, mas não é isso que está em questão. Por muito importante que ele seja, não falo aqui de amor universal e humanitário, mas do amor que nos une a dois e dois ou, às vezes, noutras combinações menos ortodoxas. Não acho que nenhuma forma de amor seja um ínfimo pormenor. Mas, mesmo que o fosse, os ínfimos pormenores também se analisam e se discutem. Além disso, esta questão da linguagem associada ao amor não é assim tão irrelevante: formatou a cabeça de uma geração inteira - a minha (e tua), a ponto de tornar incómoda esta discussão.

E ainda havemos, um dia, de falar dessa tua fuga para a abrangência sempre que falo deste tema. O grande amor universal em que sempre
te refugias é afinal feito de pequenos amores parcelares, exercidos com quem nos está mais próximo. É feito de paixão, de amizade, de altruísmo, de renúncia, de egoísmo, de raiva, de impotência, de grandes e pequenos gestos. De tudo o que somos feitos nós, humanos.

Há mil formas de amor, Miguel, e todas são amor. Tens um estranho pudor de falar sobre uma delas, não sei porquê. Mas cá estarei para o desafio de te provocar, mesmo sabendo que me atirarás a Madre Teresa e o seu amor impoluto e místico, em cada crítica à minha "superficialidade". Combinado?
;)
Ana

Anónimo disse...

Primeiro, Parabéns pelo texto e para o primeiro parágrafo - 5 estrelas! A música cai que nem uma luva...

Os meus pais nunca me disseram amo-te, acho que até soaria piroso... não sei, acho que não era hábito! Depois o tempo foi passando e os impulsos de paixão acabavam sempre num 'adoro-te' e num 'gosto imenso de ti'... coisas que tanto dizia aos 'amigos' como às amigas! Era piroso dizer aquela palavra, só os pirosos, os actores de telenovela, ou personagens de romance o faziam! Era bonito de ver e de ouvir, mas ninguém o repetia!

Depois passaram as paixonetas e encontrei o Amor... levámos mais de cinco meses para o dizer! Antes disso, só em inglês ('a língua inglesa fica sempre bem!'), no fim de um telefonema, muito rápido e baixinho, ou no fim de uma carta que nunca ia ser lida à nossa frente! Não partiu de mim (não quis ser eu pirosa primeiro), mas dele... aquilo sim era romântico! Tenho a cena fotografada na memória - parece mesmo um filme! Foi por baixo da janela de casa dos meus pais... UI! E achas que eu respondi o quê? 'Eu também?', claro que não, tento nunca responder isso... mas um 'amo-te' muito convicto! Olha, até hoje!

beijinhos

African Queen disse...

Ana, adorei este texto e identifico-me tanto com ele que nem imaginas.
De facto, a tirania das palavras que reinou nos anos 80 e 90, impedia-nos de expressar o amor como tal... era piroso, como tu dizes. Amar era piroso! Ele há coisas... e na maior parte das vezes a partilha de sentimentos era entendida com silencios. É certo que o facto de hoje se ter banalizado a expressão "amo-te" não torna as relações mais claras, menos ambiguas... se calhar as palavras ditas não são assim tão importantes, mas não deixa de ser curiosa esta tua reflexão :)... De qual forma nunca me vou esquecer da primeira vez que me libertei da ditadura das palavras e disse "je t'aime" a um namorado francês. Tive de me internacionalizar para dizer o que sentia sem ser piroso :)

miguel disse...

Ana: bem argumentado como sempre! Nada a dizer, nem mesmo quanto ao meu " meu refúgio " conceptual nem quanto ao "meu pudor" inexplicável. :)

No fundo, a minha intenção não é discutir, é mais participar.

samuel disse...

O texto é exemplar, a condizer com a canção.
A fasquia estava alta, já que o "Problema de expressão" é uma das melhores cantigas dos Clã e estes por sua vez, uma das melhores coisas que aconteceram à música portuguesa dos últimos anos, na minha opinião, claro. Alem disso, o tema do amor não é nada fácil, correndo-se sempre o risco de, como "o outro" verificou, cair no ridículo...
Parabéns!

samuel disse...

Só para dizer que como me tinha acostumado a ver o "Porta do Vento" nos bookmarks normais aqui do aparelhómetro, nem tinha reparado que não o tinha ainda pendurado na lapela do Cantigueiro...
É coisa para ficar resolvida dentro dos próximos trinta segundos.

Abreijos.

PSB disse...

Ana
Um bom tema de 'discussão' e de reflexão. Percebo-te tão bem. Nos nossos idos de 70, parecia piroso, dizes bem, dizê-lo com as letras todas. Depois, veio a era Marco Paulo (eu tenho dois amores), as telenovelas, toda a globalização em que estamos mergulhados e, acredito, ser mais fácil para as gerações actuais, serem mais espontâneas na forma como encaram as relações entre quem se ama, sem terem medo, vergonha, de o afirmar.
Todos somos feitos dos nossos momentos, passado e presente, da educação familiar em que, nesse casulo, não era linear essa exposição aberta de um sentimento tão profundo.
Parecendo-me isto verdade, também o é o facto de ter muito a ver com a massa de que somos feitos. Mais ou menos reservados, mais ou menos tímidos. Haverá, por isso, gente para quem sempre foi mais fácil dizer 'amo-te', em qualquer tempo, do que para outros, a quem mais parecia terem a boca cheia de bolas de algodão.
Acredito que, mesmo para esses, toda a abertura do mundo actual, já lhes conseguiu abrir um pouco mais a goela, creio.

ana v. disse...

Niña,

Só me dás razão: é impressionante ver como a minha geração passou essa incapacidade à tua, ainda. Ainda bem que te libertaste disso e usas todas as palavras do dicionário. Sobretudo esta, que é tão bonita. E ainda bem, também, que tens com quem usá-la!
Beijinhos

AQ,
Lol.Tirania é a palavra certa, minha amiga. Mas um namorado francês dava um jeitão para usar a expressão em francês... e fazer todo o sentido! Os meus, que foram sempre bem portugueses, ouviam o mesmo... bom, também é verdade que nunca se queixaram!

Samuel,
Obrigada pela visita e pelas palavras. Concordo com o que diz sobre os Clã, que têm muita qualidade. Dito por si, que sabe muito bem do que está a falar, essa apreciação tem ainda mais valor.
Quanto ao ridículo do amor: se até o Pessoa caíu nele, porque não nós, simples mortais?
Volte sempre. Já o linquei também para retribuir as visitas.

PSB,
Gosto muito de ver-te por aqui, sobretudo aceitando o repto de um tema como este. Porque se para nós, raparigas, era difícil dizer "amo-te" nessa época, para os rapazes era ainda mais impensável. E foi uma pena, porque eu acho que, no fundo, todos nós gostaríamos de ter dito e ouvido essa "piroseira". Mas estamos sempre a tempo de corrigir isso, não achas? Por mim, hoje em dia digo-o com muito gosto, sem algodão na boca como dantes. Substituí o algodão por seda, que dá um som muito mais bonito. E tu, também já és capaz de dizer a palavra proibida?
Um beijo

PSB disse...

Ana
Às vezes ainda me engasgo, mesmo com seda...
Como dizes, para os escritores e poetas, como tu, acredito que seja 'tu cá tu lá' com a palavra.
Um beijo

ana v. disse...

Experimenta. É uma questão de treino, acredita.

FM disse...

Será que não sabem? Ou será que não querem... por vergonha?
Mas, pensando bem, se calhar tens razão... a juventude anda preocupada com "outros valores"... sem saber o que deixou passar... ao lado.

Huckleberry Friend disse...

Sou da tal geração que já diz "amo-te". Gosto de dizer, fazer e viver o amor, mas não ao desbarato. Desde logo, essa palavra só me sai no amor a dois. Não nos outros amores que também tenho - os que o Miguel aponta. E que não são menos amores por isso.

Digo "amo-te", digo-o muitas vezes, nunca sem o sentir e, mais importante, nunca sem sentir vontade de dizê-lo. Sem as borboletas na barriga da primeira vez, mas ainda com algum movimento de mariposas algures em mim. Oxalá nunca parem. E também o digo noutras línguas, sempre em tom mais descontraído. Não é por isso que as uso, algumas remetem para momentos especiais da vida a dois. Outras têm graça pela sonoridade ou pela proximidade semântica. Lá vou eu para o iberismo: deixo à vossa consideração o castelhano "te quiero" e o catalão "t'estimo".

Como bem apontas, Ana, tende-se a banalizar as palavras. Ora, no que ao amor toca, trivializar é terrível. "Amo-te", "desculpa", e as palavras menos agradáveis que se dizem a quem se ama não são para usar a torto e a direito. Porque tão-pouco o são o amor e todos os seus demónios.

Post-scriptum musical: ouve a versão do Problema de expressão cantada pelos Clã com o Sérgio Godinho, no álbum Afinidades, ao vivo no Coliseu. Foi um grande concerto.

Post-post-scriptum musical: uma das melhores canções do inevitável Chico Buarque chama-se Eu te amo e diz tudo, sem incluir tais palavras na letra.

Dona Betã disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dona Betã disse...

Esta reflexão sobre um dos tabus de toda uma geração, deixas-me taciturno, ou antes, numa palavra menos forte, pensativo: como foi possível ter atravessado toda uma vida sem me ter apercebido (tão levianamente) da privação - são tuas as palavras - "dessa confissão que expressa o mais belo sentimento que existe."?
Amar, todos nós amámos. Dizê-lo em voz alta, aos quatro ventos, na minha geração foi possível dizê-lo timidamente.
Na geração dos meus pais era tabu.
Obrigado, Ana. Valeu o dia.

Dona Betã disse...

Pela 3ª vez, errata:

Onde se lê "deixas-me" leia-se "deixa-me".

O meu dedo que tecla hoje está desobediente :((

tcl disse...

sinto bem o que aqui escreves. também sou desse tempo em que era piroso dizer "amo-te". mas agora, que já não é, e exceptuando as utilizações gratuitas de que falas, ainda estamos muito a tempo, não achas? tendo a quem, adoro dizer "amo-te" e adoro que mo digam!

ana v. disse...

Huck,

É bom ver alguém da tua geração falar assim, sobretudo porque sei que não o fazes com leviandade. E obrigada pelas sugestões musicais, sempre de bom gosto.
Um beijinho

JG, se valeu o dia já valeu a pena!
E, como diz a TCL (e muito bem!) estamos sempre a tempo de começar a dizer "amo-te". Assim haja a quem dizê-lo, claro.
Bjs

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

gostei muito de ler a sua crónica, Ana. É verdade o que diz nela,com excepções,claro. Eu sou da geração do I Love you mas nunca tive esses handicaps da nossa lingua,talvez porque tenha sido criada num ambiente diferente,mas senti que os outros o tinham e tenha spfrido com isso algumas vezes...

beijinho

Unknown disse...

Acredito que se use mais a palavra "amo-te" do que propriamente se pensa, a meu ver existe não uma dificuldade em utilizar as palavras mas sim em admitir que se usam, porque quando se sente não há vergonha de o dizer à pessoa amada, e a ela de certeza que não lhe vai soar a piroso, o problema é admiti-lo perante outras pessoa ai sim entra a vergonha e o estigma criado nos anos 70´s e 80´s em que algumas acções ou frases eram pirosas, a meu ver perdeu-se nessa altura uma das maiores armas da humanidade e agora pelo que vejo já está a voltar aos poucos O ROMANTISMO.
Quanto ao "amo-te" em francês ou em inglês parece-nos mais fácil de dizer porque incrivelmente há palavras que estamos mais habituados a ouvi-las em línguas estrangeiras do que na nossa própria língua.
Para terminar deixo o meu descontentamento por existir uma redução da conjugação correcta em português do verbo Amar e estarmos a adoptar um brasileirismo para referimos um dos mais bonitos sentimentos existentes.(Ex. foto do post)

Capitão-Mor disse...

Um sopro no coração???
Excelente!!!

Clube Europeu ESJAL disse...

Cheguei aqui através da juliaml. Em boa hora. Assino por baixo de tudo o que escreveu. Só que, de facto, eu não era capaz de escrever tão bem.
Gostava de acrescentar que só muito mais tarde, pude, ainda em bom tempo, recuperar o que havia perdido. Espero que tenha sido o seu caso;)

ana v. disse...

Hugo,
A fotografia que escolhi para ilustrar este post é propositadamente "pirosa", só para provocar. E acho que tem toda a razão em dizer que, provavelmente, a palavra "amo-te" se diz muito mais vezes do que se admite dizer. Mas o facto de não se admitir dizê-la já é um contrasenso, para mim.

Capitão,
Um sopro no coração, mesmo. Bom trocadilho.
Bjs

Swt
Felizmente também recuperei, assim que me libertei do espartilho das palavras proibidas. E acho que é sempre tempo de fazê-lo.