domingo, 23 de setembro de 2007

A Divina Comédia


«É provável que esta seja uma condenação não exclusivamente nossa, mas em Portugal ela vai assumindo contornos macabros. As pessoas estão cada vez mais impedidas de sobreviver à custa das actividades para as quais se sentem vocacionadas. Impedir um homem de viver da sua actividade é condená-lo à morte. Esta dolorosa realidade não pesa senão na consciência dos inconformados. Esses, entregues a contingências várias, responderão ao inconformismo de múltiplas formas. Não sabemos o que se terá passado dentro do actor Pedro Alpiarça. Apenas sabemos que fez rir muitos portugueses em séries de comédia passadas na televisão, sabemos que estava desempregado e, talvez por isso, agravadamente deprimido, sabemos que saltou de um quinto andar e morreu. Sabemos que se suicidou. Os telejornais estão mais preocupados com o desemprego do multimilionário treinador de futebol José Mourinho. Este só tem uma certeza: continuará a ver futebol, a jogar, a treinar, a exercer a actividade para a qual nasceu, a dar corda à sua vocação e a ser muito bem pago por isso. José Mourinho, desempregado, sabe que para ele o desemprego não será um problema. As televisões é que parece que não, tão preocupadas que estão com o desemprego de José Mourinho.»
Encontrado no Insónia, do Henrique Fialho. Uma comparação impressionante, para reflectir.

14 comments:

miguel disse...

A questão do suicídio fascina-me e atormenta-me. É , para mim, um dos grandes mistérios com que a vida me vai deixando de "boca aberta". Penso que o suicídio atravessa, , transversalmente, sem distinção, géneros, escalões etários e grupos sociais.
Não sou especialista no tema nem quero ser.Mas parece-me que o suicídio corresponde a uma espécie de septicémia que afecta, subitamente, a saúde mental das pessoas que o cometem, o que é preocupante. O que levará seres humanos, muitos deles pessoal e profissionalmente "normais" a passar de um desejo ( quando ele existe) para a sua concretização e que implica, a maior parte das vezes, o abandono do corpo por via de uma mutilação horrorosa?

ana v. disse...

Não sei se será "subitamente", Miguel. Acredito que exista uma predisposição (genética?) para o suicídio em algumas pessoas, que o vêm como solução para as suas angústias (e às vezes sem mesmo ter tentado outras soluções). Outras pessoas atravessam dramas que nos parecem insustentáveis e nunca recorrem a ele, nem nas situações mais extremas. Porquê?
É um tema que me faz pensar há muito tempo. Sou tão leiga na matéria como tu, mas não alinho no facilitismo de considerar o suicídio uma cobardia. Parece-me, pelo contrário, que exige muita coragem. Mesmo que a descarga de adrenalina ajude, é sempre contrariar o nosso instinto mais básico - o de sobrevivência.

Anónimo disse...

Acho que há três tipos de suicídio: o que é solitário, e que julgo representar a incapacidade de viver o momento; o que exige primeiro a morte de outros (mais raro), e que representará o desejo de vingança perante uma realidade insuportável; finalmente o que faz matar os descendentes (muito mais raro) antes de si próprio, e que representará o verdadeiro desejo de pôr termo à vida, independentemente dos contextos: para isso é preciso acabar consigo e com os seus prolongamentos - os filhos.

Quanto à natureza "patológica", também levaria a uma discussão: que há algo de genético, é verdade, pelo menos em alguns suicídios, mas por exemplo no Alentejo, será que tem a ver com isso ou com o hábito, com uma forma de resolver situações ou com a doçura melancólica e profunda da planície alentejana?

Concordo com a Ana: emitir juízos de valor em teros de coragem ou cobardia parece-me desajustado. É um acto, e os actos podem ser extremos quando o que queremos ter, ser ou provar se nos afigura mais importante... até do que a vida.

Anónimo disse...

Retorna Pierre de Coubertin,
o Mundo do Desporto precisa de ti.

Anónimo disse...

Também sou leigo no assunto. No entanto, penso que não se pode ver o suicídio apenas numa perspectiva individual. E a sociedade? Acredito que, de uma maneira ou de outra, todos estamos sós. Mas a sociedade em que nos inserimos existe e determina até que ponto a minha solidão é aceite, ou não, por mim.
Não sei até que ponto os valores da sociedade (em Portugal e no mundo)não determinarão a incapacidade de algumas pessoas se ajustarem nela, com a agravante de se sentirem impotentes para alterar o que quer que seja. Por isso é que muitos usam caminhos que, de certo modo, correspondem a essa morte de facto. Estou a lembrar-me, nomeadamente, de formas de alienação, voluntárias ou involuntárias, como sejam as drogas ou a loucura.

Anónimo disse...

..."No entanto, penso que não se pode ver o suicídio apenas numa perspectiva individual."...

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Caro/a Anónimo/a

Permita-me discordar.
Se há algo "individual", total e completamente individual, é o suicídio.
E para lhe dizer com franqueza, não percebo muito bem o que aqui nos tenta dizer neste seu comentário.
Mas talvez a culpa seja minha. Desculpe.

Manuel Teixeira

ana v. disse...

Eu diria mais: individual e absolutamente íntimo, a não ser nos casos de suicídio colectivo. Mas mesmo nesses casos a vontade e a decisão é só de um (o líder), os outros limitam-se a segui-lo.

Anónimo disse...

Não falo do acto em si, porque o acto surge como resultado de algo. Portanto, falo de tudo o que leva ao acto. Ninguém decide com base em nada. Se a decisão é individual, os elementos que a constroem não se limitam ao individual. E a relação do eu com o mundo? Se alguém desiste deste mundo é por alguma razão. Não sabemos qual, mas que é,é...

Anónimo disse...

Percebi agora o contexto e compreendo o raciocínio.

ana v. disse...

É verdade que a decisão resulta de um contexto, e que o mundo à volta a influencia sempre. Mas é sempre uma leitura desse contexto que leva à decisão, e essa interpretação é individual. As drogas são outra forma de suicídio, acho eu. Uma fuga mais lenta e nem sempre consciente. Mas uma fuga, sem dúvida.

ana v. disse...

Desculpem. Interrompo a conversa porque vou ver Il Postino, que está a começar na 1. Não resisto a ver mais uma vez.

Pedro F. Sanchez disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro F. Sanchez disse...

Mas será que o suicídio do Pedro Alpiarça vende jornais?
Pois infelizmente é esse o problema da sociedade, vender o que é vendável, o resto é descartável.
Nos teus "30 Segundos" tinha já abordado, pela rama este assunto, e agora também não o irei fazer, não só pelo facto de me sentir impotente, como pelo facto de não saber exprimir com a profundidade que este tema merece.
Mas apenas acrescento uma nota:
Que se lixem os Mourinhos deste País e que nos salvem os Deuses de nos tornar-mos Alpiarças.

ana v. disse...

Verdade, PP.
E havemos de voltar ao tema: não do Mourinho, mas do suicídio. Há muito para dizer.