terça-feira, 25 de setembro de 2007

A banda


Acordou estremunhada, um caos de sons estridentes a fritar-lhe os neurónios depois de uma noite de absoluta paz e silêncio, como há muito tempo não se lembrava de ter tido. Não percebeu a princípio onde estava, nem porque tinham os seus sonhos de infância sido assim invadidos por clarinetes e tambores em fúria ciclópica, atacando uma música vagamente familiar que nada tinha a ver com os seus tempos de menina. A música… sim, era a “Grândola, vila morena”, e o dia… claro, o 25 de Abril.
Aos poucos voltou à realidade, à vida, ao presente doloroso. Estava na aldeia, naquela terra onde não pusera os pés durante tantos anos. Voltava agora, mais de 30 anos passados, e só por uma razão “de peso”. Franziu a cara num esgar de dor, enquanto os quase 120 quilos desafiavam a gravidade e tentavam erguer-se, sem consequências dramáticas, da periclitante cama de solteira. Depois de várias tentativas goradas, lá conseguiu e foi à janela, ainda a tempo de ver dobrar a esquina os últimos músicos festivos e domingueiros da banda filarmónica, num espalhafato que lhe pareceu quase grotesco.
Esquecera por completo, depois de tantos anos a viver na fleumática capital, aquele hábito ingénuo e provinciano de festejar tudo com fanfarras. Mas a verdade é que a banda da terra precisava de pretextos para sair à rua e exibir fardas e talentos, ou não valeria a pena o sacrifício das noites de ensaio, depois da dureza do dia de trabalho nos campos. E a efeméride da revolução de Abril era razão mais do que suficiente para festejar.

Ela é que não tinha nada para celebrar: voltara à terra para se isolar (os médicos tinham-lhe chamado descansar, recuperar e outras palavras animadoras, mas ela sabia bem que era para se conseguir vencer a si própria, longe das testemunhas habituais). Enquanto se olhava no espelho gasto da casa de banho, reviu mentalmente o último ano da sua vida e as razões que a tinham levado até ali: o colapso inevitável do casamento, a profunda depressão em que caíra, o internamento por tentativa de suicídio, a longa e penosa terapia e, finalmente, aquela luz ao fundo do túnel, ainda ténue, ainda difícil de alcançar, mas a única a que podia agarrar-se. “Vamos avançar, Florinda. Acho que agora já está pronta para o próximo passo, a banda gástrica. Verá como 50 quilos a menos farão milagres pela sua auto-estima! Mas tem que colaborar, ter muita força de vontade e fazer desse objectivo uma obrigação sagrada. A banda vai ajudá-la, claro, mas sem a sua determinação, nada feito… Posso contar consigo?” O Dr. Freitas tinha mais fé em si do que ela própria, ou então disfarçava bem. Parecia muito confiante e sorria sempre como se o mundo fosse uma festa interminável, o que chegava a ser irritante. Respondera que sim, claro. Que podia contar com ela. Que faria tudo para voltar a ser a mulher segura que fora um dia, milénios atrás.
E ali estava agora, também por sugestão dele: “Mude de ares. Aproveite a baixa e vá até um sítio onde se sinta bem. Afaste-se de todas as suas rotinas, concentre-se em si. Uma vez na vida, mulher, pense SÓ em si!” Pensou, durante alguns dias. Mas não tinha dinheiro para viagens e a baixa psiquiátrica retirava-lhe uma fatia substancial do ordenado, já de si diminuto. O médico ganhava muito bem, com certeza, e não percebia que os doentes não eram milionários…
Mas sabia que ele tinha razão. Tinha que sair do cenário da sua tragédia, para poder respirar fundo e reerguer-se. Os colegas de escritório, os vizinhos, até as meninas do supermercado tinham testemunhado cada lágrima perdida, cada quilo ganho. O marido abandonara-a com alarde, trocara-a por uma mulher mais nova e do bairro também, conhecida de todos. E os dois falavam… se falavam! Justificavam o adultério com motivos que ela nem sequer podia negar: o desinteresse crescente pela casa, o sexo impossível com um “monstro” que já nem podia mexer-se, a incapacidade de dar-lhe filhos, a fixação na comida como tábua de salvação. Sim, ela sabia que tinha ajudado a tornar sustentáveis aqueles argumentos.
A única solução que encontrara era esta, o regresso à aldeia. Os pais tinham morrido há muitos anos, não tinha irmãos. Aquela velha casa pertencia-lhe por direito, embora nunca tivesse vindo reclamá-la. A chave tinha estado, desde que ficara vazia, nas mãos de uma vizinha que a vira nascer. O marido detestara sempre a vida da província, nem de férias lá quisera ir, nunca. E ela, por inércia e desgosto pela falta dos pais, deixara-se também afastar, sem resistência.
Mas tudo isso era passado, agora tinha que concentrar-se em si. O médico prevenira-a contra pensamentos mórbidos e recorrentes, que o seu próprio ego maltratado construiria para impedir a cura e justificar recaídas. Tinha que derrotar a compulsão pela comida, a tentação do precipício. Talvez as recordações alegres da sua infância lhe devolvessem a auto-confiança de que precisava para vencer aquela batalha. Chegara na véspera, à noitinha já, e só a vizinha sabia da sua presença ali porque lhe deixara a chave no vaso de sardinheiras da porta. A noite tinha sido estranha, sem os sons da cidade a que estava habituada. A casa cheirava a mofo mas estava limpa, e qualquer coisa no ar despertara em si uma comoção e uma alegria que há muito tempo não conhecia.
Passou a mão pelo abdómen, dorido dos cortes e pontos recentes. A banda lá estava, ainda por insuflar, por enquanto só a marcar presença. Haveria de ter o seu papel na nova Florinda, lá mais para a frente, segundo lhe explicara o médico. Para já, e até as suas entranhas se adaptarem ao corpo estranho que se lhes colara, a função da banda era meramente psicológica e só com a sua própria força de vontade podia contar. Mas, caramba – concluiu com estranheza – como podiam os médicos confiar na força de vontade de doentes compulsivos, que se sujeitavam àquela provação exactamente porque a não tinham? Não era pedir de mais? Para que servia então a banda, se, quando se pudesse contar com ela, o principal trabalho já estava feito? Começava a achar tudo aquilo muito falível, mas tinha que colaborar. Prometera ao médico e a si própria. A mudança já prometia alguma coisa, pelo menos. Sentia-se renovada e quase feliz, com o ar do campo e a distância que interpusera entre si e as suas mágoas. Como dizia a canção, este era o primeiro dia do resto da sua vida. Respirou fundo e resolveu sair á rua.
Por todo o lado ressoava a música da filarmónica, que percorria as ruas e haveria de parar no coreto da praça, com toda a pompa e circunstância. Dirigiu-se para lá, curiosa. Muitos ainda a conheciam, quase toda a população tinha a idade dos seus pais e avós. Percebeu que a olhavam com comiseração, o corpo disforme a suscitar comentários e suposições para mais tarde. Um bando de crianças passou a correr e empurrou-a com violência, apontando para ela entre gargalhadas. Começou a sentir-se mal, a velha insegurança a voltar aos seus domínios de sempre. Sentou-se num dos bancos da praça, cada vez mais enervada.
O dia era de festa. Em volta do coreto tinham acampado os feirantes, num estardalhaço de sapatos, roupas, cestos, galinhas, alfaias agrícolas e cassetes piratas. Um frenesim de gente comprava e vendia tudo. Os altifalantes anunciavam, aos berros, um circo com feras verdadeiras e artistas de todo o mundo, “como nunca se viu por cá”. Começou a ficar tonta com a poeirada e o barulho crescente da banda que se aproximava, ameaçadora. Todo aquele espectáculo a atordoava e repelia, mais do que lhe devolvia recordações de infância. Tinham sido muitos meses de total fragilidade, sabendo-se vigiada e protegida por médicos e terapeutas, e agora estava entregue àquela voragem medieval. Sozinha e longe do seu ambiente. O abismo estava em todo o lado, afinal, porque estava dentro de si.
Já em desespero, olhou em volta, à procura de um porto de abrigo. Encontrou-o, finalmente, na barraca das farturas e do pão quente com chouriço. Ao terceiro naco já sorria, totalmente descontraída, com a mão sobre o estômago onde repousava a banda oculta. E assim ficou, feliz de novo, a ver a banda passar.
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Nota: Porque tenho muito pouco tempo para escrever agora e também porque só de há pouco tempo para cá este blog tem algum quorum, resolvi repetir alguns textos que aqui postei há meses, quando o iniciei. Este é o primeiro deles. As minhas desculpas a quem já os leu (se é que ainda se lembra disso, o que é pouco provável).

6 comments:

Anónimo disse...

Bem, agora quem saiu fui eu e logo duas novas entradas... a próxima fica para uma qualquer hora da madrugada!

Que texto belíssimo, ainda não o tinha lido. Tem muita alma e quase parece ser biográfico, pela humanidade e pela densidade emotiva. Carrega com ele o peso do corpo de Florinda e tem como pano de fundo uma imagem muito querida da minha infância: a banda. Lembra-me os dias de festa na aldeia, lembra-me a alegria das pessoas e o sorriso na cara de todos.

UN BESO
ORIANA

ana v. disse...

Oriana, felizmente não é mesmo nada biográfico. Mas conheço casos assim, e são uma barra bem pesada.

miguel disse...

Embora humilde - e ao fim de algumas semanas de convívio com este blog - gostaria que a minha opinião ficasse aqui registada. A Ana é uma escritora e poeta de nível. Desconhecia-a enquanto tal. Ela, pelos vistos já tinha um lugar no meio das letras, até porque só agora li atentamente o seu registo biográfico. O blog , em si, é interessantíssimo,muito cuidado, muito variado - veja-se a sempre actualizada rúbrica " Louros do Vento" - abrangente - música, poesia, divulgação, "fait-divers" - tudo num registo constante de qualidade e bom gosto. É uma "casa" onde nos sentimos bem e onde dá gosto regressar todas as manhãs. E, depois, não lhe consegui, ainda, descobrir uma sombra que seja de pretenciosismo, que é o tom com que os bons bloguistas acabam por borrar o bonito quadro que mostram ser capazes de compôr.
Bem-hajas, Ana.

ana v. disse...

Querido Miguel, assim deixas-me atrapalhada. Sou vaidosa qb mas nunca sei muito bem como reagir aos elogios. Vindos de ti, que escreves tão bem, sabem especialmente bem.
Olha, OBRIGADA parece-me ser a única palavra adequada!
O meu lugar nas letras está perto do Z, não te iludas. E lembraste-me, com finíssima ironia, que não actualizo há que tempos os Louros. Tudo o que lá está é, para mim, de 5 estrelas, mas haveria mil outros items para acrescentar!
E conto com vocês para me darem nas orelhas se eu começar a ficar pretensiosa. É sempre um risco nos blogs, que são também um exercício de egotismo, admita-se ou não. Enquanto o meu for suportável, vão ficando por aqui a comentar, está bem?

Beijinhos
Ana

Anónimo disse...

Mão amiga trouxe-me a este blog.
E eu, que ouvia no meu computador uma banda curiosa que dá pelo nome de "Dixie Gang" caí no texto pelo título e as imagens que o acompanham.
A vida tem destas coisas, envia-nos uns inputs nem sempre com articulações evidentes e depois desafia-nos a descobrir o seu sentido.
Isto só para dizer que é bonito o texto e forte a vibração que nos passa.
E a lição é que efectivamente temos de evitar alimentar a alma a farturas, o que infelizmente nem sempre se consegue.

ana v. disse...

Seja bem vindo, caro Anónimo, e obrigada. É verdade o que diz: nem sempre os inputs que recebemos são explícitos, mas, quanto a mim, vale sempre a pena seguir-lhes o rasto. E se às vezes se revelam farturas, outras são o mais fino caviar (a metáfora não é grande coisa no meu caso, que gosto muito mais de farturas do que de caviar).

Ana