domingo, 12 de agosto de 2007

Há dias assim


Há dias assim. Inteiros, redondos, assustadoramente completos. Como uma síntese da vida, toda ela, para que não nos esqueçamos de nenhuma das suas etapas. Que começam com uma aurora magnífica, uma verdadeira explosão de vida, e acabam num suicídio colectivo de estrelas desesperadas, como anjos caídos em desgraça. Pelo meio, uma tarde em que a morte nos reclama, lembrando-nos de que até os nossos sonhos lhe pertencem. Que só os temos de empréstimo. A prazo. Há dias assim. Em que até a terra treme e se revolta sob os nossos pés. Em que nada, nem ninguém, pode preencher os interstícios da nossa solidão. Em que um allegro matinal sucumbe sem remédio a um adagio vespertino, que antecipa já, por sua vez, um inevitável requiem nocturno. Há dias assim. Feitos de espanto e de torpor. De glória e de derrota. De risos e de lágrimas. Da luz mais alta e das mais fundas sombras. De caminhos inesperados, improváveis. Impossíveis de percorrer. De um céu aberto por um sol resplandecente e fechado por uma lua nova, embuçada em brumas. Há dias assim. Inteiros, redondos, assustadoramente completos. Como uma síntese da vida.
"Uma ilusão enfuna e enxuga a vela,
Uma desilusão a rasga e molha;
Morta a magia que pintava a tela,
O mesmo olhar de há pouco já não olha."
(Miguel Torga - Ode ao Mar)

11 comments:

Anónimo disse...

É fraco quem desertar
É cobarde quem partir
Enquanto houver um pássaro a cantar
Será proibido desistir.

ana v. disse...

Mário, a única coisa que é proibida é proibir...
E quem é que falou em desistência?

Anónimo disse...

Ninguém... falei eu, nesta curta estrofe.
É proibido proibir (dentro de certos contextos - na sociedde prefiro as sociedades em que é tudo permitido salvo o que a lei proibe, do que as que é tudo oproibido salvo o que a lei permite), mas também desistir, porque a desistência (a estes níveis, entendamo-nos) é no fundo uma proibição: a nós, porque nos inibe e limita, e cede muitas vezes ao mais fácil, proibindo-nos de lutar; aos outros porque os priva da parte de nós que deve ser revelada, porque
é ela que ajuda a aperfeiçoar o mundo, nesta acção solidária e constante, diária e ocasional, em que fazemos "o que está certo" apenas por acharmos que "está certo".
Dava conversa... em Pequim

ana v. disse...

És um filósofo, Mário. E um defensor do dever e da ordem. Eu sou mais anarca do que tu, e talvez menos altruista: as proibições irritam-me e têm o efeito contrário em mim - faço ainda pior. Mas aceito o desafio da conversa em Pequim. Ou em Goa. Ou na Patagónia. Nem sempre faço o que está certo, mas dou o peito às balas. Voilá!

Anónimo disse...

Estas cordas choram. Tristes, lúgubres. Choram os dias que são mais que assim. Dias que não cabem nos dias. Assustadoramente incompletos. Às vezes, parece, não há nada a fazer. Nesses dias, assim.

ana v. disse...

Tens razão, Cage. És um poeta e eu não sabia. Mais uma achega. Mas não te preocupes com os ventos que sopraram ontem por aqui, porque nem todos os dias são "assim". Foi uma nortada, já passou. Um Katrina privado, que deixou desalojados mas não fez mortos nem feridos. Nada que um bom campo de refugiados não resolva.
Hoje o sol brilha outra vez, e espero que não haja mais chuvas de estrelas nem tremores de terra. Os dias com toda essa intensidade não podem ser muito seguidos, ninguém aguenta!! E eu que até nem gosto do Mahler...

Anónimo disse...

"Depois de cada maré cheia virá uma maré vaza" - Sérgio Godinho

E por mim tentarei sempre fazer o que considero certo... mesmo contra ventos (fortes, nortadas, siroucos) ou marés (vivas). E se o que está certo para mim não for o que está certo para os outros todos, mesmo assim não lhes darei razão até me convencerem de que a têm.
Viver a vida com uma enorme paixão é um valor que não questiono, e com os equivalentes trambolhões. Mas vivês-la com uma enorme vontade de fazer "certo" enquadra-se e dá sentido à limpidez e à genuidade da paixão.

ana v. disse...

Muito bem, filósofo. Agradeço a lição. Nós, os mais propícios aos tais trambolhões, sabemos como é bom ter sempre ao lado alguém tão lúcido e tão sensato, quando eles acontecem.

Anónimo disse...

Eu não disse que era lúcido e sensato - palavras tuas - disse apenas que tento fazer o que, na altura, penso estar certo. E já vi "n" vezes, a posteriori, que estava "não certo".
Quem são os "nós, propícios aos trambolhões"? Eu, pela minha parte, já dei tantos e já fui empurrado para tantos, que nem os sei contar. Mas isso não me faz crer parte de nenhum "nós" - esse grupo de pertença não sei qual é.
"Os trambolhões são nossos!" - isso faz-me lembrar o hino de uma certa associação...
PS: filósofo não sou. Sou médico, pediatra, pessoa, cidadão e animal (não necessariamente por esta ordem). Lições, só aos meus alunos, e tento que seja mais um ensino/aprendizagem do que sabedoria de cátedra.
Quanto a Mahler, só a 5ª Sinfonia - utilizada no Morte em Venza de Visconti. Prefiro Bach, Mozart, Schubert e Vivaldi. E destesto rótulos.

ana v. disse...

Olha, zangou-se!! Eu a fazer-lhe elogios, e ele não gosta...
Pronto, pronto, Mário, seja como queres: bem vindo ao grupo dos trambolhões. Ficas cá bem, sabes? Entre amigos. Sem rótulos, que eu aliás também dispenso. Por acaso este adagietto de Mahler é mesmo da 5a sinfonia, mas também prefiro todos os outros que referiste. E também o velho Ludwig, e tantos outros tão bons. Mahler, só para pano de fundo de neuras.

ana v. disse...

E não batas tanto no hino do Baleal: a letra é pueril e pateta, concordo, mas também de uma ingenuidade tocante. E tem a desculpa de ter sido feita numa (e para uma) idade em que tudo isso era normal. Basta ver os primeiros versos: "Finalmente chegou Agosto, pusemos os livros de lado..." Está tudo dito, não é?