quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Equador


Para mal ou bem dos meus pecados, sou descendente de uma família de roceiros em São Tomé: os donos da “Boa Entrada”. Por sinal, felizmente!, os mais poupados no livro Equador, do Miguel Sousa Tavares. A roça fica na parte baixa da ilha, bem perto da capital. Nunca lá fui, mas diz quem a conheceu que era de uma beleza arrasadora. Como, aliás, toda a ilha.
A tal senhora (não identificada no livro) com quem casou Henrique Mendonça, era filha do fundador dessa e de outras roças, entretanto dispersas por outros donos - para nós, a quase lendária “tia Carolina” - e irmã do meu bisavô.

Fiquei feliz, como humanista que gosto de me considerar, por ter confirmado no Equador o que sempre ouvi lá em casa: que os trabalhadores da Boa Entrada tinham condições de vida e de trabalho bastante acima dos das outras roças, e que a roça era considerada modelar, nesse e noutros sentidos. A sombra negra da escravatura não me deixa, assim, muito envergonhada. Até porque, infelizmente (ou talvez não…) não nos chegou às mãos nem um tostão da fabulosa fortuna dessa época, que afinal acabou por ir parar à outra parte dos descendentes, acho que por uma zanga familiar. Tudo é o que tem de ser. A (apesar de tudo) ainda considerável fortuna do meu bisavô, foi gasta integralmente por ele – e com muita imaginação, segundo sabemos – e aos filhos só chegou, valha-nos isso, uma educação primorosa que lhes permitiu ganhar a vida daí para a frente. Voilá!
Mas herdámos desse bisavô outras coisas, muito mais valiosas: o gosto pela aventura, a curiosidade irresistível pelas coisas distantes e diferentes, a paixão das viagens.
Como memória de um passado que poderia ter-nos deixado milionários, tenho guardado religiosamente, há muitos anos, um documento precioso sobre o que era a ilha de São Tomé nesses tempos áureos: uma monografia consagrada à Sociedade de Geografia de Lisboa, organizada e prefaciada pelo próprio Henrique José Monteiro de Mendonça, na qual se dá conta de todos os acontecimentos ocorridos na roça da Boa Entrada, e em São Tomé em geral, exactamente na época em que decorre a história do Equador. Ou seja, mais ou menos entre os anos 1900 e 1905. O livrinho é delicioso e tem uma infinidade de informações precisas sobre o funcionamento de uma roça de cacau: fotografias das instalações, das diferentes fases do ciclo do cacau, dos trabalhadores, estatísticas pormenorizadas de safras, doenças, despesas, contratos e repatriamentos, etc. E mais: as opiniões e relatórios dos inúmeros técnicos estrangeiros convidados a visitar a roça, de viajantes ilustres que por lá passaram, de médicos que lá trabalharam no estudo da malária e da desinteria (a principal causa de morte entre os negros).

Há em todo o opúsculo – é nítida – a preocupação de contradizer, com dados estatísticos e testemunhos abalizados, a opinião veiculada pela imprensa estrangeira, sobretudo inglesa, sobre a existência de mão de obra escrava nas roças. E há episódios ali relatados que dariam, por si só, matéria para vários livros. Confesso, aliás, que o guardei com a intenção de escrever um dia uma história baseada nestes factos. Ficcionada, claro. Acabou por fazê-lo o Miguel Sousa Tavares, e bem melhor do que eu, com toda a certeza.

12 comments:

Anónimo disse...

Entrada interessantíssima. E surpreendente. Parabéns.
PS: Chegaste a falar disto ao Miguel Sousa Tavares?

ana v. disse...

Cheguei a mandar-lhe uma cópia deste livrinho, mas já não foi a tempo de lhe poder ser útil.

Leonor disse...

Estive duas vezes em São Tomé. Foi a minha primeira vez em África há uns treze anos mas fiquei marcada pela experiência e pelo contraste: um país de um belez natural estonteante mas com um longuíssimo caminho a percorrer. Hei-de voltar uma terceira vez, o safu fez das suas ;-)

Leonor disse...

beleza

ana v. disse...

olá papalagui, seja bem vinda.
Tem razão quanto ao longo caminho a percorrer, claro. Mas às vezes o progresso é muito perverso, já todos vimos paraísos serem transformados em lixeiras em nome dele.
Também espero ir a São Tomé brevemente, para ver o que resta da Boa Entrada e não só. E nem precisei de comer safu para querer lá ir!

Leonor disse...

O caminho de que falei não é tanto esse do progresso. Vi há pouco uma documentário na tv em que se dizia que a pobreza infelizmente tinha aumentado. O caminho seria mais o da dignificação da vida humana e das oportunidades para todos. Uma utopia, eu sei, não precisamos de ir a São Tomé para sentir isto, mas fiquei incomodada por o país não ter evoluído nesse sentido.

leonor

ana v. disse...

Claro, Leonor, percebo-a perfeitamente e concordo consigo. A minha preocupação com o dito "progresso" tem a ver com as notícias do petróleo encontrado ao largo de São Tomé, e do súbito (e inevitável) interesse das potências económicas no país. Os americanos já começaram a fazer investimentos e a assegurar a sua hegemonia na ilha. E, ou muito me engano, ou das receitas do petróleo não sobrará nem um tostão para melhorar as condições de vida daquele povo. E seria tão simples... eles são tão poucos e tão pobres, que muito pouco (sobretudo para os cofres dos States) resolveria facilmente a situação económica daquela gente. Nada utópico, portanto. Mas é sempre triste ver como nada muda nesse capítulo, mesmo com o passar dos anos e as experiências desastrosas que todos já conhecemos.

Anónimo disse...

Olá, prima! Cá estou eu de novo.
Não consigo resistir a S.Tomé, uma terra lindíssima, onde estive há 5 anos.
Como sabes, não partilho das tuas raízes sãotomenses. E no entanto, quando lá estive senti que de algum modo pertencia ali.
Conheci quase tudo o que era dado ver aos poucos turistas que lá iam na altura. E muito do que, muito provavelmente, nunca nenhum turista viu lá.
Conheci casas fantásticas, ao nível de qualquer casa fantástica cá ou noutro lado qualquer supostamente desenvolvido e civilizado e entrei em casebres de madeira sobre estacas, sem porta nem janelas, ou em casas(?) de alvenaria de uma só divisão onde vivem famílias cheias de filhos, onde se faz lume no chão para cozinhar e onde muitas vezes morre gente intoxicada pelo carvão (como se não bastasse a malária).
Conheci o "jet set" local e o seu oposto; falei com sãotomenses na rua, na capital, ou em sítios recônditos, onde só se chega de jipe.
E adorei aquela gente. Senti-me verdadeiramente "em casa", apesar de ser primeira vez naquela África (só conhecia a Tunísia, que, aliás, odiei - mas isso foi outra história...).
E talvez porque estava de férias, não me fez muita confusão aquele espírito "leve leve" do povo. Andei muitas vezes sózinha e em nenhuma altura senti qualquer tipo de insegurança. Fiz até uma coisa que nunca fizera nem em Portugal: jantar num restaurante, por sinal um dos melhores de S.Tomé, sem companhia. Já lá estava há uns dias, os meus amigos tinham um jantar de trabalho, só com homens, e não me apeteceu ir. Apesar de eu não achar necessário, insistiram em deixar-me um jipe e as respectivas chaves. Pouco depois de saírem, achei que era uma aventura ir, noite fechada, sózinha, guiar pela beira-mar até àquele restaurante mesmo em cima do mar onde estivéramos uns dias antes a beber uns gins ao anoitecer.
Cheguei ao restaurante, preparava-me para me sentar e pedir uma barriga de peixe e uma cerveja de lá - óptimas as duas - e começo a ver alguém a esbracejar e a chamar-me. Acabei por jantar com umas portuguesas, amigas dos meus amigos, que conhecera logo no dia da chegada, num jantar numa das tais casa fantásticas que conheci em S.Tomé.
E foi bem divertido. À saída, se elas não conhecessem o jipe que eu levara, tinha sido complicado, porque os jipes que havia em S. Tomé nessa altura eram todos iguais e estavam bastantes à porta.
Estás a ver ? Era como se eu estivesse cá, a encontrar gente conhecida nos sítios. Afinal não foi a tal aventura de ficar sózinha, mas senti-me ainda mais em casa.
Adorei S. Tomé, aquele verde todo, aquela gente alegre apesar de tudo e "leve leve"...
E adorava voltar, se possível antes que aquilo se transforme numa República Dominicana cheia de resorts - os que já havia também conheci - e em que, de certeza, a maior parte das pessoas continuará a sobreviver sem um mínimo de dignidade, apesar do petróleo!

Desculpa, Ana, mas S. Tomé põe-me assim: não me calo. Ai que saudades...!

Beijinho
Rosarinho

P.S. Já deve haver lá caipirinhas!

Leonor disse...

Só mais uma achega. Os santomenses são muito simpáticos, o país seguro e do ponto de vista paisagístico luxuriante, o perfume da terra inebriante, como tão bem descreve Miguel Sousa Tavares, mas as assimetrias são chocantes. Talvez por ter conhecido também essa camada da população que vive muito bem, o choque foi grande, e de repente tem-se a sensação de algo mais poderia e deveria ser feito a níveis de cuidados básicos e que esse algo mais não envolveria assim tantos recursos.

Anónimo disse...

Tenho andado longe daqui,mas ainda não estou no "Grande Circo da Luz". Vou para lá daqui a uns dias, e aquilo que me dizem os que já lá estão faz-me apetecer pouco voltar. Além de tudo o mais, sempre me fizeram impressão os artistas de circo - alegria às vezes tão falsa como os brilhos das paillettes, collants rasgados, animais de ar infeliz dos maus tratos.
No caso deste circo, os artistas não são miseráveis, não têm roupa brilhante e esburacada, mas continuam a fazer piruetas mesmo depois dos aplausos e da saída do público.

Quanto a S. Tomé, bora lá!!!

Bjs
Rosarinho

Mad disse...

Li este livro de uma assentada - e olhem que foi uma grande assentada! - também a mim essa terra me chama, apesar de já ter a minha dose de tropicalidade...

Definitivamente, a ir.

Ó prima, parece que estás a desenburrar na escrita! Para quando o tal brogue?

Anónimo disse...

Estas manas andam um bocado estranhas: uma descreve um dia "assim", a outra anda muito calada. A propósito, o que é que andas a fazer, ó minha doida, que andas a escrever tão pouco ? Tá-se mesmo a ver: agora que ganhaste o Nobel da Blogadura, já não ligas aos teus leitores ?

O meu brogue vai ter que esperar que eu volte de férias. Aliás, acho que foi bom não ter começado antes. Agora estou mais em paz, e já não vou precisar de usar o blog só para exorcizar coisas chatas... Claro que terei sempre oportunidade de contar alguns episódios ilustrativos da burrice que me rodeia, apesar de já me ter visto livre daquela personagem a quem me apetecia bater.

Também adorei o Equador. E também porque se respira mesmo S. Tomé ao lê-lo.

Beijo
Rosarinho