terça-feira, 3 de julho de 2007

A Generala


Saber o que se sabe,
não saber o que não se sabe:
isso é que é saber.

Confúcio


A minha tia-avó Carlota tinha a alcunha de “Generala” entre a família e os amigos, por razões óbvias. Para começar, tinha voz de trovão. Fazia-se ouvir muito antes de chegar ao nosso campo de visão, naquela saudação que lhe era peculiar e que todos imitávamos em crianças, para a fazer rir: “Ó da casa, cá estou eu!!”.

Era a típica tia solteirona, de idade indefinida entre os cinquenta e os sessenta e cinco, de formas generosas e gestos bruscos. Feiota, coitadinha. Talvez por isso, ou por ter herdado o proverbial mau génio das mulheres da família, nunca arranjou marido. Mas, se essa circunstância a tinha angustiado no passado, há muito tempo já que ultrapassara o desgosto ou a falta. Dizia a minha avó que ela fora uma Maria-rapaz até muito tarde, e a verdade é que, mesmo depois de adulta, conservou resquícios desse perfil – gostava de usar roupas e acessórios masculinos, que lhe davam um aspecto bizarro. Era expedita e independente, gostava de fazer a sua vida sem dar contas a ninguém. Todos nós, seus sobrinhos, ocupámos o lugar dos filhos que ela nunca teve, com a vantagem de não sermos uma responsabilidade mas apenas um prazer.

Vivia na velha casa amarela da Quinta Grande, não muito longe de Lisboa, que nunca vira reformas na decoração desde que ela a herdara. Tanto assim que, quando a herdámos nós, o orçamento para as obras foi de tal maneira astronómico que tivemos que vendê-la, porque não tínhamos dinheiro para elas. Mas nessa época, criados em apartamentos de cidade, todos adorávamos passar férias ali. Espero, sinceramente, que quem a comprou seja lá tão feliz como nós o fomos.

Com a casa, herdara também uma dama-de-companhia mais ou menos da sua idade, que os meus avós tinham contratado para a bisavó Júlia, nos últimos anos da sua vida. Quando ela morreu, conta a minha mãe, houve reunião familiar para decidir o destino da dócil Rosinha. Mas toda a gente se lhe afeiçoara entretanto, e ela acabou por se eternizar lá em casa e ser considerada como família. A pobre Rosinha acompanhou sucessivamente - eu diria que aturou, como uma santa – os despropósitos da bisavó Júlia, os caprichos dos meus avós e, finalmente, a tia Carlota, que gostava dela mas que a tratava com a pura tirania de um superior hierárquico em tempo de guerra. Andavam sempre juntas, Rosinha a reboque da tia Carlota, e faziam um par cómico que nós caricaturávamos sem piedade: "Lá vêm a Generala e o Soldado Raso!"

Nenhuma das duas levava a mal o chiste mas, por vezes, notava-se que Rosinha desejaria que a tia Carlota não fosse tão autoritária consigo. As más línguas diziam que havia mais do que simples amizade entre as duas, embora, na altura, as nossas mentes infantis não atingissem bem o alcance desses comentários. De qualquer modo, eram boatos que ninguém provara alguma vez: a intimidade da tia Carlota era uma fortaleza inexpugnável. Fosse como fosse, os amigos já não concebiam uma sem a outra e dirigiam-lhes, naturalmente, convites de casal.

São infindáveis as histórias da Generala, e ainda hoje assunto de muitos dos nossos serões em família. Como todos os excêntricos, era fonte de eternos falatórios, a que não dava a mais pequena importância nem deixava que condicionassem a sua vida. Acho, até, que aquela aura de loucura lhe dava um íntimo e secreto prazer, provocadora como era.

Infatigável coleccionadora, em qualquer recanto da casa amontoava latas, caixas de todos os tamanhos e feitios, garrafas, isqueiros, pedras, búzios e conchas, e uma infinidade de outros objectos absolutamente inúteis que as empregadas odiavam, por tornarem quase impossível a tarefa da limpeza. Nem as casas de banho escapavam: inúmeros sabonetes de hotel e frascos de perfume vazios ali reinavam, atravancando o espaço e transformando uma ida apressada numa difícil travessia. Lembro-me de que nos pedia sempre, de volta, as embalagens vazias dos chocolates que nos dava de presente, com mil recomendações para que as abríssemos com cuidado para não as rasgar.

A fixação tinha começado com a colecção de leques da bisavó Júlia, mas esses tinham sido criteriosamente escolhidos por uma personalidade metódica e estavam divididos por cores, antiguidade, tamanho e motivos. Havia-os de todas as proveniências no grande armário de vidrinhos da salinha, como pano de fundo aos pequenos objectos de exposição. Alguns eram já verdadeiras preciosidades, e essa primitiva colecção fora, até, causa de alguma fricção na altura das partilhas. Fora decidido fazer lotes numerados para os objectos soltos e tirá-los à sorte, enrolados como rifas e reunidos no chapéu de coco do avô Fernando. Para seu desgosto, a Generala não tirou do chapéu o papelinho cujo número correspondia ao lote dos leques. Talvez por causa dessa contrariedade, nesse mesmo dia nasceu nela um incontrolável ímpeto de coleccionadora.

Para nós, crianças, uma casa como aquela representava infindáveis cenários de aventura. Tinha tudo o que podíamos sonhar: soalhos que rangiam, alçapões, quartos fechados e escadas que acabavam em portas secretas. Os vasos de plantas do jardim de Inverno eram as florestas tropicais onde caçávamos perigosos animais selvagens com as bengalas da entrada – outra das suas colecções – e, em cada uma das divisões da casa, descobríamos a semente de uma nova aventura. Para já não falar no pátio e no terreno em volta, aonde nem sequer faltava um pequeno ribeiro que servia de panorama às nossas epopeias marítimas. Ela sabia-o, e deixava-nos explorar sem restrições aquele mundo irresistível.

Era engraçado como a Generala era benévola e paciente com as crianças, mas absolutamente implacável com os adultos. Talvez porque ela própria não tivesse amadurecido para além da adolescência – dizia-se que tinha sido vítima de um traumatismo de parto, que a deixara ligeiramente afectada – a verdade é que era a nossa tia preferida e, muitas vezes, alinhava connosco em brincadeiras e partidas.

Nunca quisera tirar a carta de condução nem comprar um carro, e defendia que os transportes públicos eram a solução dos países civilizados. É claro que raramente os utilizava, porque os amigos e os irmãos iam buscá-la e pô-la a casa; mas sempre contra os seus protestos e para alívio de Rosinha, que temia as confusões e escândalos que ela armava em comboios e eléctricos. Dava grandes descomposturas aos homens que não se levantavam para lhes dar o lugar, e aproveitava a impossibilidade de uma fuga estratégica para lhes explicar como deve comportar-se um cavalheiro que se preze.

A sua história mais célebre passou-se exactamente no Metropolitano, numa dessas visitas que nos fazia às vezes, sem avisar. Nesse dia, Rosinha estava doente e ficara em casa. Voluntariosa, a tia Carlota meteu-se mesmo assim no comboio para Lisboa e depois apanhou o Metro para nossa casa. Estava satisfeita com a sua independência e excitada com a experiência rara de viajar sozinha. Mas não se lembrara, por falta de hábito, de que tinha escolhido exactamente a hora de maior enchente no Metro e viu-se, de repente, entalada entre gente desconhecida, de pé no centro do corredor. Irritada com tantos encontrões, levantou o braço para agarrar a pega do tecto e aproveitar para conseguir, assim, mais algum espaço.

E foi então que deu por falta do relógio de pulso que usava sempre. Olhou à sua volta, desesperada. Uma fúria incontida subiu-lhe pela espinha ao dar com os olhos nele, mesmo ao seu lado, no braço de um matulão mal-encarado que parecia divertir-se com a sua aflição. Espalmada contra o homem, ponderou seriamente a hipótese de denunciá-lo com um grito de alarme e um pedido de ajuda aos circundantes. Mas, depois de olhar as caras apáticas que a rodeavam, a que o cansaço e a saturação da rotina davam uma expressão de total indiferença, concluiu que ninguém se importaria com aquilo. Para eles devia ser apenas um roubo, mais um entre os milhares que haveria diariamente naquele buraco sufocante. Tinha que agir sozinha, e depressa, antes que as portas se abrissem na próxima paragem e o gatuno desaparecesse na multidão. Reunindo toda a coragem e suportada pela indignação, olhou o ladrão bem nos olhos e disse-lhe, numa voz velada e fria que não permitia réplica, mostrando-lhe a sua malinha aberta: "O relógio, aqui! Já, imediatamente! E não dê nas vistas, ou será pior para si…"

Para seu próprio espanto e alívio, a estratégia resultou. O homem tirou o relógio do braço e deixou-o cair para dentro da malinha sem uma palavra, com uma expressão embaraçada. Ninguém parecera dar por isso. Tanto melhor, o problema estava resolvido e só lhe restava sair dali o mais depressa possível. Furou a multidão comprimida e chegou à porta, mesmo a tempo de saltar da carruagem e antes que o comboio entrasse de novo em movimento. O ladrão seguira viagem, talvez na mira de um assalto mais proveitoso. Sem sequer olhar para trás subiu, a correr, as escadas que a levaram de novo à segurança da rua movimentada. Só aí parou e, então, sentou-se num banco de jardim, com as pernas a tremer. Ao afivelar o relógio no pulso estava orgulhosa de si própria, embora tivesse apanhado um enorme susto.

Quando, por fim, chegou a nossa casa, ainda ofegante da aventura, presenteou-nos com um relato colorido de tudo o que tinha vivido. Lembro-me de que a ouvimos todos de boca aberta, espantados com a audácia da Generala. Ela exibia o relógio recuperado como um troféu de caça, e o assunto foi largamente comentado durante todo o jantar.
O meu pai ralhou-lhe, prudente: "Não devia ter feito isso, tia Carlota. Esses malandros às vezes andam armados, a valentia podia ter-lhe saído cara…". Ela riu-se, sem dar-lhe grande crédito. Era a heroína da noite, nada podia estragar o efeito da sua façanha. Sentia-se invencível.

A meio do jantar, tocou o telefone. Albertina, a nossa empregada, foi atender e, quando voltou, a confusão e o riso contido misturavam-se na sua expressão. Não era costume Albertina dar assim nas vistas, sobretudo em frente do meu pai. Mas, dessa vez, tinha uma boa razão para isso.
Embaraçada e sem saber como dar aquela notícia, acabou finalmente por falar: "Era a dona Rosinha… manda dizer à senhora dona Carlota para não ficar preocupada com o relógio, que ficou em cima da cómoda do quarto…"

Ainda hoje tenho presente na memória a expressão atónita da tia Carlota, segurando na mão o relógio que tinha acabado de roubar: "Meu Deus, é igualzinho ao meu! …"

De todas as histórias da Generala, esta é, sem dúvida, a nossa preferida. Teve até honras de epitáfio privado, uma graça que corre na família desde que ela morreu, há já uns anos, na véspera de fazer oitenta e sete:

«Aqui jaz Carlota, a Generala
Assaltante de relógios no Metro de Lisboa»


(AV, Gente do Sul)

6 comments:

Mad disse...

E para quando a publicação?

Anónimo disse...

Também fico à espera!
Bjs

ana v. disse...

Em princípio para o próximo Natal. Hope so. Por agora tenho muito com que me entreter com a antologia gastronómica, que vai sair no Brasil em Setembro. Vai haver forró e quindins de iáiá para quem quiser!

bjs
ana

Anónimo disse...

As primas estão convidadas para o lançamento NO BRASIL?????????? Se sim, eu TOU LÁ e aproveito para dar um pulo ao resto do mundo da Madalena e do Diogo, mais a família de 4 patas que conheci na net.
E estou ansiosa pelas Gentes do Sul. A Generala é mesmo a nossa tia que eu estou a pensar ?

Bjs
Rosarinho

ana v. disse...

Não sei em quem estás a pensar, mas a Generala é uma mistura de várias pessoas que eu conheço e também tem coisas das tias. A história do roubo do relógio aconteceu mesmo, o resto é ficção.

Menina Marota disse...

AHAHAHAHAHAHAH, perdõe-me mas tive que me rir!!!

Deliciosa, esta estória!!

Grata por a partilhar!

Um abraço ;))))